Trabalho de aproveitamento do curso de atualização: Profissionais de saúde e educação: A morte na prática do seu cotidiano, USP, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade, sob coordenação das professoras Ingrid Esslinger, Maria Júlia Kovács e Nancy Vaiciunas, de 31/03/99 a 26/05/99
Introdução
“Diante da morte, já não há o que fazer. Só nos resta aceitar o convite: tentar ouvir a beleza trágica como gesto de fraternidade. Afinal de contas, somos todos irmãos, e todos estamos diante do mesmo abismo.” Ruben Alves
Vivenciando o cotidiano comum de um profissional na área de saúde (Psicologia Hospitalar) e na área de educação (Faculdade de Medicina), algo me incomodava no trato com eventos frequentes de morte – a minha falta de preocupação.
Não é que eu ficasse indiferente ao sofrimento alheio, às dores do cliente que solicitava apoio, mas procurava estar bem posicionado para poder proporcionar suficiente acolhimento a tantas dores. Sentia que deveria entrar no clima fúnebre, demonstrar honestamente os sentimentos mais profundos, como se fossem meus – mas não eram meus.
Entendia que deveria desenvolver maior empatia com os clientes, mas isso não determinava a necessidade de um sentimento de derrota, de fracasso, de estranheza a um fato tão corriqueiro em nossa atividade. Não é que eu não desse o devido valor à vida, muito pelo contrário, é que entendia a morte como natural gran finale de todo espetáculo que é a vida. A maioria dos colegas sofria demasiadamente com os fracassos nas tentativas de cura, e/ou com o incômodo de enfrentar a realidade da mortalidade. O processo de falência da vitalidade ou o evento fatal da morte nos pacientes internados provocavam picos de estresse nos profissionais, por mais diferentes enfoques que fossem frente à mortalidade. Nos estudantes havia uma esperança vã de acabar por conseguir domínio também nesse assunto (o que, na prática, acabava não acontecendo). De forma geral, tanto em profissionais quanto em estudantes, havia medos, fugas, negações e sofrimentos.
Na apresentação dos participantes do curso, pude apreciar relatos sobre o incômodo no trato com a morte no cotidiano profissional, relatos esses comuns à maioria dos colegas de trabalho, tanto na saúde quanto na educação, muitos relatos associados a vivências pessoais com parentes mais próximos, denotando uma sensibilidade pessoal que interferia no comportamento profissional.
Mudam as pessoas, mudam os lugares, mas as preocupações, os medos, os anseios e tudo mais, continuam os mesmos. Falar de morte ainda mexe muito com os sentimentos das pessoas. Quem não tem resolvido o problema no círculo pessoal sente maior dificuldade quando enfrenta o problema profissional. Afinal, será que há alguma diferença? Logicamente o profissional é o mesmo indivíduo que vive seus momentos de relações pessoais e íntimas com seus mais próximos.
A morte na roça
Acredito que seja de minha formação caipira que advém a tranquilidade quanto ao evento da morte. Quando morria alguém, o que sempre era esperado como natural (eram raros os acidentes), se ouviam as expressões:
– “Oce” sabe que Fulano morreu?
– É, descansou. Tão novo né! Ou então: – Num diga! É mesmo? Bão, descansou né.
Aquilo me parecia que viver era sempre uma coisa muito cansativa, que só viria a se resolver mesmo era com a morte. Depois, muito depois, que vim saber da mitologia grega: O castigo de Sísifo. Segundo a lenda grega, Sísifo – rei de Corinto – tendo escapado astuciosamente de Tânatos, o deus da morte, enviado por Zeus para castigá-lo, foi levado por Hermes, ao inferno, onde o condenaram ao suplicio de rolar uma rocha até o cimo de um monte, donde ela se despencava devendo o condenado recomeçar incessantemente o trabalho. Em resumo, se não morreu, tem que trabalhar.
Por outro lado, o evento da morte na comunidade sempre revestiu de algo solene; tudo parava e o centro de todas as atenções era a casa do defunto; em encontro de amigos que só falavam bem do falecido. Parentes longínquos, apareciam como por mágica. Alguns iam com o enterro, outros ficavam para consolar os da casa. Os vizinhos sempre colaboravam com os comes e bebes, colchão, travesseiro, etc. Até as crianças, que normalmente pouco importavam para o mundo adulto, acabavam por adquirir alguma importância:
O poder da morte, vista por um coletor de flores
Na minha terra, lá pelas bandas do Pau Arcado de Campo Limpo, quando morria alguém, a molecada era encarregada de conseguir as flores para o velório. Era uma farra, virava competição para ver quem trazia mais flores, flores mais bonitas, flores mais diferentes, etc. Mas, o que mais proporcionava satisfação era o poder que revestia a função de coletor de flores, dava gosto chegar às casas dos mais mesquinhos moradores do local e intimar, com toda autoridade, o sequestro daquele bem tão cuidado; e ninguém podia negar. Pessoas que durante todo tempo e em qualquer outra situação eram superiores a tudo e a todos, naquele momento, ficavam à mercê da vontade e da escolha do moleque coletor de flores. Quanto mais pobre era o defunto, mais prazer dava buscar flores dos mais ricos, dos mais chatos, dos mais esnobes, de todos enfim que a gente menos gostava. Lembro de casas em que só entrava quando coletava flores; isso era o máximo – um ganho só proporcionado pela morte de alguém.
Esse convívio com situações que poderiam ser dramáticas para os outros, mas que a mim era uma fonte de prazer, fizeram a morte um evento sem maiores complicações. Sem ter passado por dores de perdas representativas que ocasionasse qualquer trauma, o aprendizado lento e gradual do evento fatal se construiu sólido e tranquilo. Pelo menos até agora nada conseguiu abalar tais estruturas. Em se falando nisso, não poderia de deixar de relatar uma estória ouvida na infância, que serviu como ensinamento sobre a fatalidade da morte, seja para o rico seja para o pobre:
O homem que quis enganar a morte
Zé Mané era um pobre coitado que nunca conseguira nada na vida. Sentado à beira do caminho passava o tempo que era o que lhe aprazia. A “dona morte” apareceu de repente, sem se saber de onde viera, dizendo que tinha chegado a sua vez e que iria levá-lo. Acostumado a reclamar de tudo, o Zé Mané reclamou também da morte, dizendo que nunca tinha conseguido nada na vida e que queria ter a oportunidade de ficar rico, pelo menos um pouco.
– Tá bom – disse a morte – vou lhe dar sete anos para ficar rico, depois venho buscar.
Continuou sentado na beira do caminho, pensando no tempo que lhe restava e não consegui imaginar como poderia ficar rico. Passando, por ali, um fazendeiro rico da região, falou para o Zé Mané que estava pensando em vender a fazenda. Disse que valia mais de duzentos mil, mas venderia pela metade para o primeiro que aparecesse.
– Pois é, pensou o Zé Mané, se eu tivesse dinheiro poderia aproveitar, mas como? E continuou sentado na beira do caminho. Logo parou um carro, um fazendeiro de fora, perguntando se o capiau sabia de alguma fazenda para vender. O Zé Mané disse que sabia de uma por quatrocentos mil; o fazendeiro se interessou, foram ver e o negócio foi feito.
Com trezentos mil começou a ciranda financeira do Zé. Era um tal de aparecer negócio bom de todo lado que em pouco tempo o “seu” José Manoel já era o homem mais rico da região.
Um dia ele acordou lembrando que eram passados sete anos. Tinha assumido o compromisso de ser padrinho de casamento numa cidade próxima. Chamou o jardineiro, que se parecia com ele, e mandou que fosse no seu lugar, com sua família, motorista e tudo mais. Instruiu que o jardineiro se fizesse passar por ele, como se fosse ele mesmo; se alguém perguntasse pelo “seu” José Manoel, todos deveriam confirmar que o jardineiro era ele.
Enquanto isso o próprio ficou em casa, cismando na varanda. Lá pelas tantas, quase fim de tarde, a dona morte chegou perguntando pelo fazendeiro. O Zé Mané que se passava pelo jardineiro, logo se apressou em dizer que o “Seu” José Manoel estava com toda família e o motorista numa festa na cidade.
– Olha, é facinho chegar lá, é no fim dessa estrada ali.
A dona morte consultou seu relógio e falou:
– Olha, eu estou meio atrasada hoje, vou levar você mesmo.
Assim começou meu contato com o assunto da morte. Sem maiores temores, mas com todo respeito pela fatalidade, pela universalidade, pela irreversibilidade.
Esse confronto (no curso), com as opiniões e os relatos de tantos profissionais experientes e vividos, poderia trazer alguma modificação nos meus procedimentos quanto ao momento tão pouco esperado quanto certo? Enquanto desenrolava o curso, aconteceram os encontros semanais, procurarei sentir, aprender e refletir um pouco mais sobre o assunto.
Uma visão naturalista
Ao refletir sobre a morte, o que me parecia mais comum era sua fatalidade sobre tudo que está vivo. Antes mesmo do primeiro alento todo animal tem como destino comum o último suspiro. Entendia o evento da morte com visão realista, natural, sem os temores que cercam a maioria das pessoas de meu contato profissional.
Trabalhando com a terra (esta foi minha origem, o meu passatempo, minha terapia) aprendi a natureza finita de qualquer ser vegetal ou animal, por mais distintos que fossem os ciclos de vida de cada espécie. Dos restos mortais de uns, sobrevivem os outros. Da deterioração de um ser morto se extrai o adubo para o fortalecimento de outro ser vivo. Aliás, pensando bem, não há um “ser” vivo, mas um “estar” vivo, tal é fluidez da existência, flogístico evento encantador que merece todo empenho enquanto existe, “posto que é chama”.
Observando o universo, por menores que sejam nossas possibilidades da visão do todo, os ciclos diários e anuais do sol, os ciclos da lua, o posicionamento dos astros em geral, se abstrai um ritmo definido, quase constante, que possibilita previsões. É difícil destacar a morte de um indivíduo, quando o ambiente mais amplo vive exatamente do ciclo de recomposição e decomposição constantes, quando a matéria de composição corporal é pouco ou quase nada distinto de qualquer outro animal.
Da vida humana, apesar de tantas e tão diversas considerações, somente de uma verdade se tem certeza absoluta, embora não se precise a data, a morte. Tão comum, deveria ser aceita com normalidade, no entanto há um consenso geral de fuga, de negação, de inconformismo.
Numa reportagem do Globo Rural, sobre sementes de milho indígena, o repórter vê um índio velho, circulando pela terreiro da aldeia e cantando continuamente. Aproxima-se do índio e pergunta se estava rezando ou comemorando alguma coisa. Surpreendente foi a resposta:
– Eu canto de alegria, porque estou vivo. Eu dia todos voltamos para a terra, eu já não tenho muito o que fazer, enquanto estou aqui eu canto de alegria por estar vivo.
O índio vive com a natureza, convive. Encara a morte com naturalidade de uma sabedoria singular. Somos da terra, somos terra, um dia voltamos para a terra. Enquanto o índio vive como um “ser da terra”, o branco pensa em “ter a terra”. Morrer passa a ser uma perda quando se deixa de ter a terra para ser da terra, a inversão de dominador para dominado. Natural seria buscar viver plenamente, enquanto se tem vida; aceitar a morte quando é findado o tempo concedido.
Uma visão religiosa
Sem procurar entender, nem convencer, pois é de foro íntimo e pessoal, admito a possibilidade de uma existência espiritual, finita ou não, onde a existência atual e terrena pode ser um estágio mínimo do espírito incorporado, onde o que nasce, cresce e morre é o corpo, o veículo, a matéria que é comum a quase todos seres do planeta. Dentro desse infinito de grandeza do universo que percebemos, por menores que possamos sentir é bem possível que haja alguma razão maior que simplesmente nascer, viver e morrer. Aliás, me causa espanto o fato de todas as religiões, e tantos quantos se dizem religiosos, falarem tanto da morte e da eternidade e mesmo assim fazerem do evento uma lastimeira. Lembra-me um chiste de Ziraldo:
Um amigo vai visitar o outro no hospital, percebe o inconformismo do doente e vaticina:
– Está preocupado com que? Se está doente, ou vai sarar ou vai piorar. Se vai sarar não tem com que se preocupar; se piorar vai parar na UTI. Na UTI você pode sarar ou morrer; se vai sarar não tem com que se preocupar; se morrer, vai para o céu ou para o inferno. Se vai para o céu, não tem com que se preocupar, e, se for para o inferno, vai encontrar tantos amigos por lá que será uma farra danada. Então por que se preocupar?
Sem o maniqueísmo religioso, nem pensar em carma ou castigo, isento das mais diversas promessas e ameaças, acredito ser o melhor enfoque, o da aceitação de um evento maior que nosso simples entendimento. E se não sei, não entendo, não tenho certezas, não tenho forças para enfrentar … o que fazer? Nada, aproveitar a vida enquanto puder.
A propósito, por mais discutíveis que possam ser as religiões, há um conceito comum a todas – a vida não nos pertence. Ela nos é dada por empréstimo, não nos cabe o direito de devolução antes do tempo, mesmo que não se saiba o que fazer com tal dádiva. No cristianismo há uma parábola, a dos talentos, onde se relata que um senhor confia uma quantidade de talentos para diferentes pessoas e depois vem cobrar seu uso. Em Mateus, 25:
- E a um deu cinco talentos, e a outro dois, e a outro um, a cada um segundo sua capacidade, e ausentou-se logo para longe. 16. E, tendo ele partido, o que recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. 17. Da mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois. 18. Mas o que recebera um, foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor. 19. E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles. 20. Então aproximou-se o que recebera cinco talentos, e trouxe-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que granjeei com eles. 21. E o seu senhor lhe disse: Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. 22. E, chegando também o que tinha recebido dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos; eis que com eles granjeei outros dois talentos. 23. Disse-lhe o seu senhor: Bem está, bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. 24. Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste; 25. E, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. 26. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? 27. Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros, e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros. 28. Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. 29. Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado.
No exercício diário da atividade profissional (psicologia hospitalar) não tinha nenhum receio em utilizar os conceitos religiosos do paciente ou dos familiares (fossem eles quais fossem), seja na preparação para a morte, seja no comentário e suporte do evento acontecido. Não tinha encontrado nas obras científicas nada mais confortante que os mais diversos enfoques religiosos, por mais variados que fossem. Desde a ressurreição do corpo (com carne e osso, como entendem alguns evangélicos), até na diluição no todo universal como acreditam alguns, qualquer expectativa esotérica é melhor que a fria ausência de vida no cadáver. Valorizava qualquer crença, independentemente à minha crença, visto não poder oferecer nada melhor – e nem adiantaria qualquer tentativa de explicação lógica e científica porquanto o momento da morte era sentido de forma muito mais cultural e religiosa que qualquer outra coisa em vida.
Filosofando sobre o desconhecido
Buscando o conhecimento do todo universal, me incomodava tanta insignificância perante algo tão grande que nem se imaginar permite. Sem maiores fanatismos, nem tampouco qualquer explicação científica, a ideia de algo desconhecido que regula ou interfere no acaso fantástico do Big Bang, é um sentimento de respeito ao desconhecido, ao sobrenatural, ao fantástico. Se não sei, não entendo, não discuto, apenas suponho e respeito seus desígnios.
O macrocosmo das galáxias e o microcosmo atômico merecem respeito, se não por qualquer outra coisa, pelo menos pelas grandezas aparentes e o desconhecimento quase total.
Se estrelas explodem, morrem, se acabam, quem serei eu para discordar da mortalidade? Aliás, em se falando de estrelas, lembra-me Fernando Pessoa – durar muito tempo deve ser cansativo:
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas…
INSTANTES (Jorge Luiz Borges)
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. Fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Claro que tive momentos de alegria, mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque se não sabem, disso é feito a vida, só de momentos, não percas o agora. Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas. Se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.
Do poeta há de se entender o confronto com a previsibilidade, com a certeza da fatalidade que se aproxima sem que se possa fazer qualquer coisa senão lamentar o tempo desperdiçado em questões menores, em momentos em que a vida não se fez valorizada. Não lamenta o que pode e deve acontecer, mas o que deixou de fazer.
Coisas do dia-a-dia, ou, a morte no cotidiano
A morte na despedida de solteiro
Um dia fui chamado para dar suporte a um rapaz cujo pai havia falecido no hospital. Por duas horas fiquei ouvindo as lamentações e o choro intermitente. O rapaz repetia a mesma história, as mesmas frases, as mesmas palavras:
– Eu falei para ele que iria jogar e depois iria para minha despedida de solteiro. Eu iria me casar amanhã (Sábado). Ele disse que estava mal, mas eu disse que era minha despedida de solteiro.
– Ontem ele foi experimentar o terno do casamento, ele iria entrar comigo na igreja. Agora não vou mais me casar, tenho que enterrar meu pai. Hoje cheguei em casa cedo e soube que ele tinha sido internado, cheguei aqui e ele está morto. Meu pai está morto, por que? Por que?
– Eu sou espírita, sei que não é bom para ele eu ficar chorando, segurando o espírito aqui, eu entendo a morte, sei que não deveria ficar segurando ele aqui (e voltava a abraçar o cadáver, acariciar).
Eu não tinha muito o que fazer, nem dizer. Ele não queria ouvir, mas falar. Eu ouvia, concordava quando ele pedia, me fazia presente. Empático, na medida do possível. Havia o choque da morte às vésperas do casamento. Havia a ausência nos últimos momentos da vida. Ele estava na farra enquanto seu pai morria no hospital. Havia um sentimento de culpa mais que o fato da morte em si. Ele parava um pouco e voltava ao mesmo ponto, as mesmas falas, com pouca ou nenhuma variação. Eu continuava ouvindo, observando se algo pior viesse acontecer ao rapaz e precisasse de minha intervenção. A única coisa que me incomodava era que ele passava a mão no defunto e depois passava a mão em mim (Sei lá do que morreu, se havia algum quadro contagioso!?).
Depois de duas horas as preocupações do moço passaram para os custos, atestado de óbito, se fosse necessária uma autópsia, translado, etc. Quando as lamentações passaram do afetivo e emocional para o lógico e racional, dei por encerrada a necessidade de minha presença. Mesmo assim voltei logo depois para conferir o andamento da situação; já estavam presentes outros parentes, mais tranquilos e o assunto era a burocracia do enterro. Dei por encerrada a minha participação, e mais tranquilo voltei seguir a rotina do hospital.
A tolerância do moribundo
Logo no começo de minha atividade no hospital, durante dois meses, acompanhei o sofrimento daquele paciente (55 anos). Algo nele lembrava meu pai (morto de câncer no esôfago, depois de um ano de sofrimento após a cirurgia), talvez a careca e o bigode, a mesma idade. Eu não havia acompanhado, de perto, o sofrimento moribundo de meu pai, morava a mais de 3000 km de distância.
No começo, eram esperanças de melhoras daquela dor de barriga. Talvez se resolvesse com a observação e o tratamento. Ele contava histórias do seu trabalho, seu emprego, suas viagens. Depois veio a comunicação da necessidade de cirurgia.
A espera da cirurgia anunciada parece que piorou tudo. Enquanto isso eu procurava manter o ânimo do paciente, tentava mantê-lo falando de seus planos, contando suas vivências, resgatando momento felizes, coisas interessantes. Nunca ouvi lamentações. Nem sei dizer se todo tempo que passava com ele, era realmente para a saúde dele ou para meu conforto.
Aconteceu a cirurgia. Além da “dor de barriga”, o paciente passou a sofrer com os cortes, os drenos, e o processo infeccioso. Duas semanas de sofrimento, e a morte.
Eu sabia que era um câncer, toda equipe sabia, mas ninguém discutiu isso diretamente com o paciente. Eu conversava com a esposa, tentando mostrar que o paciente estava animado, que tinha falado de projetos, que pensava na aposentadoria. Tentava aliviar a situação que ela sabia bem, pelo menos no “seu nível de entendimento”.
A surpresa aconteceu após sua morte. Conversando com a esposa, como que querendo consolar, é que fiquei sabendo da história real. Ele sabia que era um câncer fatal. Comprou um terno novo, despediu-se da cachorrinha e deixou especificado todos os tratos com cada canto do jardim. Despediu-se de cada pé de flor, de cada canteiro. Ele falava com as flores. Ao sair de casa, despediu-se da porta, passou a chave e entregou o chaveiro para a esposa. Verteram-lhe lágrimas o último afago na cachorrinha. O túmulo tinha sido providenciado, a regularização de todos os papéis, os pagamentos, tudo.
Passei a pensar que em todo tempo que passamos juntos, ele estava cuidando da minha insegurança, estava dando o apoio necessário para eu executar o meu trabalho, tolerando minha ignorância, minha inexperiência.
A morte anunciada, com endereço errado
Houve uma internação de urgência, uma menina de treze anos com apendicite aguda. Operação demorada, muita complicação, risco de vida. A mãe não suportou o sofrimento e acometeu-se de uma crise de pressão alta, sendo socorrida na UTI.
Na sexta-feira, desenvolvi meu trabalho com as duas, a filha na clínica cirúrgica, ainda com grande sofrimento, e a mãe na UTI, sem muitas possibilidades de contato devido aos tubos. Na segunda-feira, voltando ao trabalho, soube que filha tivera alta – após o enterro da mãe que não suportava a ideia de a filha estar correndo perigo de vida.
Preparando-se para consolar a família
Um jovem forte de peito grande dera entrada na urgência com 3 tiros de revolver. Jovem forte, dava todos indícios de sobrevivência. Foram feitas as intervenções possíveis e necessárias; a recuperação parecia certa. Uma semana depois, enquanto eu conversava com o jovem, percebi que ele começava ter dificuldade de respirar, azulava, virava os olhos e não conseguia falar. Chamei por ajuda; veio a equipe do centro cirúrgico, vieram os residentes, os internos, os enfermeiros; nunca tinha visto tanto esforço concentrado. Parei para observar o trabalho da equipe de socorro – foram duas horas de tentativas, ressuscitador, adrenalina, epinefrina, ventilação, tubos, etc. Mas tudo em vão.
Chegou era hora de enfrentar a dor da família, promover consolo. Nunca ficamos tão unidos num mesmo propósito (médico, psicólogo, interno). Pensávamos o trabalho que teríamos naquele enfrentamento. No primeiro contato com a família, a expectativa. Vão olhar o corpo; alguns afagos, e nós ali esperando a explosão. O casal se dirige para nós, como que fosse perguntar o por quê, e … perguntou dos papéis para o recebimento do seguro.
Conclusão
Independentemente às diversas considerações e enfoques sobre a morte no desenrolar do curso, foi na penúltima aula, com a abordagem da professora Júlia Kovács sobre o sofrimento da dor que encontrei o meu ponto de referência mais importante – a dor de quem morre.
Como disse a professora Ingrid Esslinger, enquanto os profissionais da saúde se ocupam muito com a morte, um evento natural, se esquecem que a dor não é uma situação natural. Ficam trocados os papéis quanto aos cuidados necessários ao paciente. É certo que mais cedo ou mais tarde qualquer um virá fatalmente a morrer, no entanto não precisa morrer com tanta dor.
Este tem sido meu sofrimento enquanto profissional atuante junto aos leitos do hospital, a percepção da dor física que poderia ser amainada por medicamentos ao alcance de qualquer instituição. É difícil tratar da dor subjetiva, o sofrimento psicológico, quando a realidade palpável e pesada está por demais presente na dor física. Não há conversa, não há abordagem, não há qualquer envolvimento empático que sobreponha a real condutibilidade nervosa que aflige os neurotransmissores chegando aos centros cerebrais; mesmo porque não se consegue contato efetivo, não há comunicação possível, com quem está obnubilado pela dor.
Segundo o professor Dráusio Varela, oncologista de renome nacional, não há porque tanto preconceito quanto ao uso da morfina, o mais barato dos analgésicos. Dizem que vicia, o que não é verdade. E se fosse? A maioria dos pacientes em tanto sofrimento estão mesmo com pouco tempo de vida, nem há tempo para a perniciosidade do vício. Prefiro um cliente viciado em morfina por muitos anos, com boa qualidade de vida (pelo menos, dentro do aceitável) do que morto em terrível sofrimento na dor desnecessária.
Valeu o curso, encontrei meu problema – não me incomoda a morte, um evento previsível, mas a dor, um sofrimento evitável.