Hoje à tarde, tomei o elevador para ir até a garagem no subsolo; dois andares abaixo a elevador parou e entrou uma senhora japonesa que me cumprimentou com um “Boa Tarde”. Respondi prontamente com um “Boa Tarde”.
Logo me veio à mente “konnichiwa”, mas na falta de segurança de minha parte, falei em inflexão de pergunta:
– Konnichiwa?
Ela respondeu sorridente: É konnichiwa.
Logo chegamos à garagem, ela foi para o seu carro e eu para o meu. Sobrou, no entanto, a lembrança de um evento que eu ainda não havia registrado no meu livrinho de memórias.
O ano, deveria ser por volta de 1978 ou 1979, pois eu estava morando em Belo Horizonte e gerenciava os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
O local, São Gotardo-NG, a 93 km de Patos de Minas-MG, onde tínhamos um revendedor dos tratores Ford.
O evento, Cooperativa de Cotia, que faria um dia de campo na colheita do trigo; uma novidade nacional da Embrapa: o cultivo de trigo no cerrado brasileiro.
Eu que era novato nesses assuntos, fiquei deslumbrado com tanta movimentação, tanta tecnologia e tantos japoneses.
Conheci, ao vivo, as máquinas colheitadeiras SLC, Massey-Fergusson e Santa Matilde. O mais próximo daquilo que eu já tivera visto, só que em tamanho bem menor, era a máquina elétrica de cortar cabelo.
Foi o dia todo andando atrás dos técnicos e dos agricultores tentando aprender um pouco daquilo tudo que era muita informação para minha cabeça. Andar de bota, no meio da terra arada e na palhada restante da colheita, eu não sabia, mas cansava muito as pernas. Ouvia as histórias, apreciava os comentários, mantinha certa distância, pois não podia mostrar toda minha ignorância.
Minha única segurança no local era o jovem engenheiro mecânico Pimentel, meu colega de trabalho na região. Eu fazia vendas e administração, ele cuidava da assistência técnica das máquinas. Se houvesse alguma pergunta técnica para mim, não teria nenhum pudor em dizer que seria mais apropriado perguntar ao engenheiro.
O sol anunciou o fim do seu caminho, naquele dia, e deixou que o vento mostrasse o frio que vinha do sul. O corpo quente e suado do sol e da movimentação, sentiu calar o frio ao se aquietar naquele final de dia e nos levou, Pimentel e eu, para o endereço fornecido do local do hotel reservado para nós.
Um quarto para dois, banheiro fora. Fora mesmo, lá no fundo do terreno. Não tinha água quente, era ao natural, naturalmente gelada como estava aquela tarde. A porta do banheiro merece um capítulo à parte: não sei o nome daquilo, mas já tinha visto em filmes de faroeste, aquelas portas de bares. Um dia eu vi Rolando Boldrin dizer que é a porta “Tanto faz”, batendo as pontas das mãos.
Fui até lá, constatei a veracidade daquela porta, realmente não era ilusão. Não tive coragem, mesmo porque a toalha de banho fornecido pelo hotel era do tamanho das minhas toalhas de rosto.
Pimentel fez uma proposta: Vamos até o evento da Cooperativa, tomamos umas e outras, daí dá coragem de enfrentar o chuveiro. Fizemos aquele banho de gato, passamos perfume e fomos.
O evento estava marcado para 20 horas, chegamos uma meia hora antes, mas as garrafas ainda estavam fechadas. Só restou procurar com quem conversar para passar o tempo e a outra pessoa que conhecia ali era o revendedor de Patos de Minas, o Geraldo.
Chegando perto do Geraldo, ele me deu um susto.
– Como é tudo pronto?
Não entendi a pergunta, disse que não sabia do que ele estava falando. Ele, então, explicou:
– Esse evento, da Cooperativa de Cotia, foi combinado com o Gualter, o gerente de implementos da Ford, que viria para fazer uma palestra sobre implementos agrícolas. O povo todo aí está esperando para começar a palestra.
Mas o Gualter, um engenheiro agrícola angolano, não veio e por resto, caiu no meu colo tal responsabilidade que eu não poderia transferir para o Pimentel.
Foram longos quinze minutos de observação da sala que quanto mais japonês chegava, mais a sala ficava fria. Eu que tinha passado por ali só para uma bebida quente, estava agora na função de palestrante.
Cada minuto que passava, mil coisas aconteciam na minha cabeça.
Deu vinte horas. A sala se aquietou. Alguns que cochichavam também pararam. Eita povo organizado, sô!
Tentei fazer de conta que não era comigo, mas o Geraldo resolveu abrir a evento e me apresentar. Não esqueceu de dizer que o tal engenheiro agrônomo que estava programado sofrera algum empecilho, que não tínhamos ainda notícia, mas o fato é que não tinha chegado.
Há de se lembrar que naquele tempo não havia telefone celular e onde tinha telefone fixo, não tinha linha, não completava a ligação.
Voltando ao fato, lá estava eu na frente de 30 ou mais japoneses da Cooperativa de Cotia ávidos para aprender algo interessante sobre implementos para o trigo no cerrado.
Eu havia conhecido trigo naquele dia.
Sem mais nada a fazer, a não ser enfrentar a situação, fiz minha saudação respeitosa:
– Ohayô gozaimasu.
Ninguém respondeu. Achei que a pronúncia não estava boa, falei de novo.
– Ohayô gozaimasu.
Ninguém respondeu ao meu cumprimento, mas houve algum burburinho na plateia, sinal de que ainda havia vida por ali.
Animei-me e disse mais uma vez, num tom quase de cobrança de uma resposta:
– Ohayô gozaimasu.
Aí ouvi uma alma boa, no meio da plateia, dizer:
– É konbanwa. (boa noite)
Fiz então uma cara de bobo alegre, e repeti:
– Kombanwa!
Aquilo provocou sorrisos, e uma dúzia deles disse Kombanwa.
Aí começou meu discurso:
– Hoje cedo, quando eu soube que teria que fazer uma palestra para japoneses, saí pela cidade procurando um professor que pudesse me ajudar em alguma coisa. Não encontrei nenhum professor disponível, mas a recepcionista da escola, acho que com dó de mim se propôs a me algumas aulas. Ela era tão gentil!
Começamos então com:
– Ohayô gozaimasu.
Eu aprendi que era bom dia. E ela me fez repetir muitas vezes. Ela ria da minha pronúncia. Depois começou falar algo como:
– Watashi wa anata o aishiteimasu!
Ela falava e eu não entendia. Terminou a aula e ela não me disse que era isso.
– Eu te amo! Soou uma voz na plateia.
Todos riram, eu havia quebrado o gelo. Então retomei em meu português usual:
Os senhores me desculpem o mal jeito, mas não tinha como me apresentar diante dos senhores só para me desculpar pela falta de compromisso do colega de trabalho. Deve ter lá suas razões, mas nada sei dizer a respeito desta falta.
Por outro lado, eu hoje aqui só aprendi com os senhores que estavam no campo. Nunca tinha visto tanta beleza ao vivo. O mais próximo de um campo de trigo que já estive foi lendo o Pequeno Príncipe. Agora ocupar o tempo dos senhores com o que eu sei é perda de tempo. Os senhores sabem de implementos muito mais do que eu. Os senhores usam implementos que eu não conheço nem o nome.
Quanto ao trator Ford, vou confessar para os senhores que eu acredito muito nos engenheiros da fábrica que me puseram em treinamento e enfiaram um monte de coisas na minha cabeça, fazendo acreditar que o trator é o melhor do Brasil. Tenho que acreditar, pois não conheço os outros. Se vocês me derem uma lista de problemas para resolver, eu anoto tudo e vou brigar com os engenheiros da fábrica. Se bem que outro dia em Divinópolis um cliente disse que este era muito bom, mas era o único trator que vinha com um defeito de fábrica. Não entendia o que ele estava dizendo e pedi para explicar. Ele me mostrou o D, no nome Ford.
Mas isso é coisa de mineiro, vamos falar de japonês.
Temos um cliente ali em Carmo do Paranaíba que me arrumou um problema político.
Outro dia cheguei em Patos de Minas e o revendedor veio reclamar comigo:
– O que você andou fazendo em Carmo do Paranaíba?
Respondi, honestamente:
– Não conheço Carmo do Paranaíba, nunca fui lá, só vi placa de estrada indicando o rumo.
O revendedor falou:
– O Luiz Nakano anda pela cidade dizendo que não precisa mais do revendedor de Patos de Minas, porque agora o gerente da Ford vai na casa dele, anda mostrando para todo mundo o seu cartão de visita, seu Pedro Santo Rossi.
Aí sim me lembrei.
Estava indo para Patos de Minas, já tarde, com sede, pensando em parar em algum lugar. Eis que vejo uma casa, uma porteira, um trator Ford. Resolvi parar ali, pedir um copo d’água e esticar as pernas. Parei na porteira e logo veio um japonês. Para puxar assunto fui logo dizendo que era da Ford e queria saber por que o trator estava parado, se havia algum problema não resolvido pela assistência local.
– Não é problema nenhum, disse ele, é que minha sogra gosta de ver a novela da tarde, eu coloco o trator para ligar a tv na bateria.
– Menos mal, conta pra mim como é assistência técnica do nosso representante em Patos de Minas.
– Não tem problema, não falta peças, quando a gente chama eles vêm. É um pouco caro, mas está tudo assim mesmo, né.
-Aproveitei para pedir um copo d’água. Agradeci, deixei meu cartão e segui a viagem.
-Agora soube que meu cartão está fazendo sucesso na cidade que nunca fui.
-Prometo que não vou dar meu cartão para mais ninguém aqui, pois o revendedor está aqui presente e vai atender todas as reclamações que vocês podem ter da Ford.
-Vou anotar tudo para discutir depois com ele e com a fábrica.
O Geraldo tomou a palavra e após cinco minutos de conversa com uns e outros, deu por encerrada a palestra. Alguns cooperados vieram me cumprimentar pela brincadeira da palestra em japonês.
Pudemos então tomar algo quente, mas por dentro eu já tinha fervido.
Voltando ao hotel, foi o Pimentel que fez a proposta:
– A gente não tira a bota, dorme assim mesmo, amanhã cedo se resolve sobre o banho.
Já estava quase dormindo quando o Pimentel me chamou:
– Rossi, você lembra onde estávamos na semana passada?
Pois é. Estávamos em Copacabana, no Meridien. Não dá para reclamar da vida que levamos.