Prof. Dr. Pedro Santo Rossi, psicólogo,
especialista em Sexualidade Humana (Unicamp),
mestre em Educação em Saúde e doutor em Saúde Coletiva (Unifesp).
Fui convidado para falar de saúde mental e, convenientemente, alertado para não enfocar a doença mental, somente a saúde mental. Ora, temos que inicialmente discutir o que seja saúde e depois discutir o que seja mental. A Organização Mundial da Saúde (1946) disse que “Saúde é o ESTADO completo bem-estar físico, psíquico e social.” Não se fala de doença, mas como tal definição é idealista, tudo mais seria doença.
Categorizar saúde e doença é coisa discutida desde os primórdios da humanidade. Já Demócrito, contemporâneo de Sócrates, três séculos antes de Cristo, dizia que saúde era uma suposição, uma abstração, uma idealização. Dizia ele que como somos átomos que se movimentam o tempo todo e a cada momento estamos diferentes do momento anterior (posso garantir que vocês ao saírem daqui não serão os mesmos que entraram), não podemos dizer que alguém é doente ou são. Se categorizarmos um estado de ânimo como sadio, todos os outros seriam estados de doença. Num certo momento você pode me olhar e ver um ser depressivo, noutro um ser eufórico. Antes do almoço sou um, depois sou outro, os ânimos se alteram. Isso não quer dizer que eu seja um bipolar, um maníaco depressivo. Os ânimos mudam ao longo do dia e ao longo da vida.
Um apaixonado faz loucuras, até se casa.
Assim é muito difícil categorizar uma pessoa entre estar louco ou não, afinal o que é uma loucura? Raul Seixas seria um louco quanto dizia “prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”? Assim é muito discutível o poder atribuído a alguns que definem quem está doente e quem está enfermo. Saúde e doença são muito mais uma questão política do que uma questão orgânica. Isso em se falando do funcionamento do corpo físico, quem dirá da saúde e da doença no processo de pensamento.
A doença física é o campo de exploração da indústria da medicação, interessada que é nas doenças crônicas que mantem verdadeiros impérios comerciais. A doença mental não fica atrás; a cada revisão do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da Associação Psiquiátrica Americana, agora no número 5, qualquer inquietação pode ser categorizada como um transtorno específico, uma doença mental. Tenho notícias de que metade dos psiquiatras americanos não concorda com toda aquela parafernália classificatória.
Demócrito já previa naquele tempo (sec IV AC) que cada vez mais seriam aumentados os números de doenças em função da variedade do número de classificadores, mas que nunca seriam atingidos todos os tipos de estados de ânimo possíveis nas pessoas.
“Saúde e doença é muito mais do interesse da indústria da cura do que da possibilidade de curar”.(Clovis de Barros Filho)
Michel Foucault, em “A História da Loucura”, vai discutir sobre quem se arroga o direito de dizer quem é louco ou não. Não é uma questão de avaliação constitucional do indivíduo, mas a submissão do indivíduo à política do poder constituído. Mudando o dono do poder, se muda a definição de saúde.
Gabriel Garcia Marques, em “Doze contos Peregrinos” fala de uma mulher que tendo quebrado o carro na estrada, precisava de um telefone para chamar ajuda. Pediu carona para uma ambulância que passava. Levava mulheres sonolentas para um hospício. Chegando no hospício, no meio das outras, dizia “eu só vim telefonar”. Ali passou vinte anos, sempre dizendo “eu só vim telefonar”.
Aqui no Juquery, teve o caso do Marques de Rabicó, que me foi contada pelo psiquiatra envolvido no caso.
Tarde da noite o psiquiatra de plantão assistia na televisão, o programa do Jô Soares que entrevistava alguém daquela novela que apresentava fotos de desaparecidos. Jô Soares expressou sua preocupação com o colega da Globo, o Marques de Rabicó, desaparecido a mais de seis meses. O psiquiatra deu um salto: então é verdade!
No dia seguinte liberou o louco que se dizia artista da Globo, que se dizia Marques, que estava internado ali a mais de seis meses.
O artista estivera numa comemoração em São Paulo e foi para a rodoviária tomar o ônibus da meia noite para o Rio de Janeiro. Na espera, dormiu. As duas da manhã passou a polícia da rodoviária acordando quem dormia nos bancos, geralmente bêbados e sem teto. Sem documento, desacatou a polícia, se dizia artista da Globo (o personagem usava máscara de porco, ninguém conhecia o artista), acabou sendo levado para a delegacia. Foi considerado louco e internado no Juquery. Sempre que reclamava, recebia um “sossega leão”. Se o psiquiatra não estivesse vendo o programa do Jô, talvez o tal louco ainda estivesse internado.
Assim posto que saúde e doença é resultado de poder político, vamos buscar as possibilidades de mudança política, do poder constituído para o poder pessoal.
Saúde mental é resultado de uma construção pessoal, sempre num contexto social, visto que viver é relacionar-se. Eu não consigo pensar sem estar no mundo. Eu não consigo pensar minha individualidade ser estar na relação com vocês. O meu nome de nada me serve, pois só serve para que vocês me chamem disso que me deram como nome.
Embora eu seja para vocês, o que vocês pensam de mim, eu sou para mim o que eu penso de mim.
Saúde mental, além das atribuições sociais, que são resultado de avaliação social, deve ter um componente muito individual, a formação do próprio conceito. Aí se destaca um grave problema mental, a hora que eu tento ser o que não sou para atender o que o outro pensa de mim.
Quem sou eu para mim mesmo?
Conhece-te a ti mesmo é uma recomendação dos deuses gregos. Em algum lugar da mitologia consta que o titã Prometeu, para beneficiar o homem, roubou do Olimpo a astucia (o fogo dos deuses) que era recurso privativo dos deuses. Não podendo retirar de volta, os deuses resolveram esconder a astúcia num lugar que dificilmente o homem encontraria, dentro dele mesmo.
A saúde mental tem sido muito comentada nas relações sociais, mas somente pode ser gestada dentro do indivíduo. O céu e o inferno de cada um estão dentro de si mesmo, dependendo do modo como a própria pessoa se considera. Ao invés de lutar pela saúde pública, pela saúde coletiva, o investimento maior deveria ser na saúde mental do indivíduo. Mesmo porque uma pessoa bem resolvida é um a menos para perturbar os outros. Perceba, entre seus amigos e parentes, aqueles que sempre promovem infelicidade nos outros que os rodeiam, são pessoas infelizes que mudariam o mundo ao seu derredor se mudassem a si mesmos.
Não quero aqui descartar a importância das relações sociais, do entorno, mesmo porque a vida só se dá nas relações entre as pessoas, mas quero destacar que a pessoa é o centro da questão. Qualquer sentimento, seja de alegria ou de sofrimento, só acontece dentro da pessoa.
Vamos então nos enveredar por uma ideia, ou por uma teoria psicológica, do poder pessoal.
Rogers, por ele mesmo:
- Nas minhas relações com as pessoas descobri que não ajuda, a longo prazo, agir como se eu fosse alguma coisa que eu não sou. (p. 28)
- Descobri que sou mais eficaz quando posso ouvir a mim mesmo aceitando-me, e quando posso ser eu mesmo. … Julgo que aprendi isto com meus clientes, bem como através da minha experiência pessoal – não podemos mudar, não podemos afastar do que somos enquanto não aceitarmos profundamente o que somos. (p.29)
- Atribuo um enorme valor ao fato de poder me permitir compreender uma outra pessoa. (p.30)
- Verifiquei que me enriquece abrir canais através dos quais os outros possam comunicar os seus sentimentos, a sua particular percepção do mundo. (p.31)
- É sempre altamente enriquecedor poder aceitar outra pessoa. (p.32)
- Quanto mais aberto estou às realidades em mim e nos outros, menos me vejo procurando, a todo o custo, remediar as coisas.(p.33)
- Posso ter confiança na minha experiência. … quando sinto que uma atividade é boa e que vale a pena prossegui-la, devo prossegui-la. (p.34)
- A apreciação dos outros não me serve de guia. Apenas uma pessoa pode saber que eu procedo com honestidade, com aplicação, com franqueza e com rigor, ou se o que faço é falso, defensivo e fútil. E essa pessoa sou eu mesmo. (p.34)
- A experiência é para mim a autoridade suprema. (p.35)
- Sinto-me satisfeito pela descoberta da ordem pela experiência. … A investigação é um esforço persistente e disciplinado para conferir um sentido e uma ordenação aos fenômenos da experiência subjetiva. (p.36)
- Os fatos são sempre amigos. O mínimo esclarecimento que consigamos obter, seja em que domínio for, aproxima-nos muito mais do que é a verdade. (p.37)
- Aquilo que é mais pessoal é o que há de mais geral. (p.37)
- A experiência mostrou-me que as pessoas têm, fundamentalmente, uma orientação positiva. … Acabei por me convencer de que quanto mais um indivíduo é compreendido e aceito, maior tendência tem para abandonar as falsas defesas que empregou para enfrentar a vida, e para progredir num caminho construtivo. (p.38)
- A vida, no que tem de melhor, é um processo que flui, que se altera e onde nada está fixado. (p.38)
Penso que é possível agora ver claramente por que razão não existe filosofia, crença ou princípios que eu possa encorajar ou persuadir os outros a terem ou a alcançarem. não posso fazer mais do que tentar viver segundo a minha própria interpretação da presente significação da minha experiência, e tentar dar aos outros a permissão e a liberdade de desenvolverem a sua própria liberdade interior para que possam atingir uma interpretação significativa da sua própria experiência. (p.39)