Saúde do trabalhador – cuidando do cuidador
Pedro Santo Rossi
Palestra no CEREST- Franco do Rocha – 2010
Falar em saúde do trabalhador em saúde para os profissionais de saúde parece, à primeira vista, um contrassenso. Teoricamente pode parecer que o profissional de saúde que trabalha com saúde do trabalhador sabe de tudo sobre a saúde dos trabalhadores, inclusive sobre a sua própria saúde. Ledo engano. Teorias à parte, na prática é tudo diferente. O profissional de saúde, em geral, não cuida da própria saúde, nem nos fatores mais adversos e constantes, tais como alimentação e sedentarismo (basta olhar para a minha barriga). No dia primeiro de abril de 2002, fiz minha matrícula no mestrado em educação em saúde, na Unifesp. Ao sair para a rua, automaticamente levei a mão ao bolso e tirei um cigarro. Olhei bem e pensei, este será o último. Afinal não posso fazer mestrado em educação em saúde e continuar fumando. Pode parece mentira de primeiro de abril, mas lá se vão oito anos sem cigarro e vinte quilos a mais na barriga. Agora prometi que vou terminar o doutorado sem barriga sobrando; mudei minha alimentação e estou fazendo ginástica todos os dias, ou quase.
Esse assunto de ‘cuidar do cuidador’ começou a ocupar meus cuidados quando assumi a psicologia hospitalar no Juquery, 1998. Sem nunca ter trabalhado em saúde, pois vinha da área de desenvolvimento de recursos humanos em marketing, fui jogado ao trabalho de acolhimento dos pacientes das clínicas cirúrgica e ortopédica, além da UTI do hospital. Gente sofrendo e gente morrendo. A cada dia um ou dois sofredores a mais e uma morte a cada dois ou três dias. Gente sofrendo antes de morrer e gente sofrendo porque outros morreram. Isso tudo me levou a procurar ajuda fora do serviço porque o ‘estado’ não provê essa assistência. Matriculei-me num curso da USP, sobre a morte no cotidiano do profissional de saúde e educação. Foram oito semanas de curso nos dias de folga, às próprias custas. Aproveitando o deslocamento para a USP embrenhei-me numa viagem que ainda não terminou, pelos meandros da psicologia humanista à busca de compreensão de mim mesmo, isso envolveu psicoterapia pessoal e supervisão profissional.
Para quem não sabe, o psicólogo, para bem exercer sua atividade profissional, deve fazer a sua terapia individual, seu cuidado pessoal, sua preparação para a vida, e isso custa dinheiro. Para dar conta de sua atividade profissional, onde não tem chefe a quem dar conta de seus resultados e pedir ajuda, o psicólogo precisa pagar um ‘supervisor’, geralmente um professor de psicologia ou um psicólogo mais experiente, onde vão ser discutidos os casos mais complexos do atendimento profissional. Isso custa muito caro. E o ‘estado’ não disponibiliza esse serviço tão necessário para a boa execução da função profissional.
Quando terminei o mestrado achei que poderia oferecer esse trabalho de supervisão aos colegas que começavam atender, nos municípios, pessoas com HIV e apresentei um projeto à diretoria da época. Fiquei sem resposta. Agora esse evento bem trazer tudo à tona, de novo.
Agora voltando ao tema inicial, saúde do cuidador do trabalhador em saúde, sou levado a pensar na origem de algumas palavras do nosso vocabulário cotidiano. Busca que me leva a pensar nos gregos, na mitologia grega, nas duas ilustres irmãs Hygéia e Panacéia.
Asclépio (ou Esculápio para os romanos), o filho de Apolo que se tornara deus da medicina, teve duas filhas a quem ensinou a sua arte: Hígia (de onde deriva higiene) era a deusa da saúde, limpeza e sanidade, e Panacéia. O nome desta última formou-se com a partícula compositiva pan (todo) e akos (remédio), em alusão ao fato de que Panacea era capaz de curar todas as enfermidades. Já naquele tempo se separavam bem duas situações bem distintas, a saúde e a doença. Hygeia, higiene, sanidade de um lado, enquanto a panaceia dos remédios e curas de outro lado. Com todo respeito pessoal a todos médicos e enfermeiros (aqui presentes), costumo dizer que a atividade da saúde está em mãos erradas, pois foi entregue a pessoas que foram preparadas para cuidar de doenças, não de saúde. Sanidade e higiene são coisas de outra ordem, são coisas a serem cuidadas por educadores e psicólogos, não por médicos e enfermeiros, mais afetos a doenças e remédios.
Divergências à parte, minha proposta aqui é pensar em sanidade, em saúde, e da minha parte: a saúde mental em particular. Reduzindo ainda mais o foco, quero destacar a função da sanidade mental na produção defesa contra a doença. Afinal meu trabalho é na área da aids – a síndrome da imunodeficiência adquirida, onde se promove um desequilíbrio das defesas do organismo o que proporciona a manifestação das infecções oportunistas. Dizem oportunistas porque só ocorrem quando o organismo está debilitado, aproveitam a oportunidade do organismo sem defesa.
Normalmente, quando se tem um arranhão ou mesmo uma leve fissura na pele, o sistema de defesa do corpo manda para a lesão um exercito de células chamadas leucócitos que vão ‘tapar o buraco’, vão promover a defesa contra a invasão de corpos estranhos. Defendem o corpo com a própria vida, viram matéria purulenta, viram casca de ferida, mas protegem o corpo da pessoa. Poderíamos dizer que são os guardas do corpo que impedem a invasão de objetos não desejados. E aí está a sua fragilidade, pois o HIV (vírus da imunodeficiência humana) tem uma preferência particular a esse típo de célula, onde consegue entrar e se multiplicar. O soldado, o guarda, o defensor, agora foi individualmente atacado, contaminado, adoecido. Dependendo do organismo como um todo, a doença, a aids, pode demorar até dez anos para aparecer. Lentamente o organismo vai perdendo o poder de defesa e uma hora a infecção oportunista se apodera do organismo, a pessoa adoece. A aids tem origem no adoecimento do defensor atacado pelo vírus que veio de fora, mas existem outras situações que podemos considerar como adoecimento do sistema de defesa do corpo. Nem só de aids morrem as pessoas.
Eu ainda estava no atendimento da clínica ortopédica quando, numa segunda-feira, me deparei com dois novos pacientes acidentados. Um homem forte com seus cinquenta anos, moreno, frentista de um posto de gasolina que se esqueceu de tirar os pés do caminho de um pneu de caminhão. Seus dedos foram esmagados e a equipe médica resolveu amputar a ponta os dedos todos daquele pé. O homem ficou revoltado e dizia que não queria mais viver: “Não sou homem para viver aleijado”. Depois de quinze dias, morreu ali, naquela cama, com diagnóstico de pneumonia e anemia, mesmo recebendo soro com antibióticos, para a infecção e recebendo transfusão de sangue para correção da anemia. Morreu porque não quis viver aleijado. No leito ao lado havia dado entrada um paciente, cerca de 30 anos, atropelado na rodovia, quatorze fraturas do joelho à clavícula, passando por pernas, bacia, braços e costelas. Imobilizado por tanta quebradeira, rezava para poder sair dali numa cadeira de rodas, para, dizia ele, “ver minha filha crescer”. Depois de um mês, saiu de muletas, para ver a filha crescer. Saiu para viver. Um morreu porque quis e outro não quis morrer.
O sistema de defesa do corpo, funciona a partir da mente. É a vontade de viver que produz tanto os leucócitos, as células de defesa, quanto as hemácias, as células de sangue. Diariamente morrem milhares de células cansadas e são substituídas por células novas. A produção de novas células depende da vontade de viver. Aquele que disse para o seu corpo que não queria mais viver porque tinha perdido os dedos, o organismo aceitou o comando e parou de produzir leucócitos e hemácias. Não houve ajuda externa suficiente para romper o comando interno de falência. Outro que queria superar as deficiências, não teve nenhuma infecção não teve anemia, saiu andando para acompanhar o crescimento da filha.Vida é equilíbrio entre ataque e defesa. Como num jogo de futebol, de basquete, de voleibol, ou tantos outros, a equipe perde quando a defesa falha. Por isso é necessário cuidar das defesas do corpo. O fracasso das defesas viabiliza a doença.
Falando em ataque e defesa, o que vem à mente é o estresse. Só não tem estresse quem já morreu. A vida se compõe de três situações básicas: ataque, defesa e repouso.
Para o ataque o corpo entende que precisa fabricar adrenalina, suprir o corpo todo de um hormonio próprio para a agressividade. Para a situação de fuga o corpo se supre da noradrenalina, o hormonio próprio para agilidade e destreza para a fuga. No entanto, se não utilizados, os dois hormonio ficam circulando no corpo, sem qualquer utilidade, muito pelo contrário.
Não sei se vou ou se fico, não sei se fico ou se vou.
Se vou e sei que não fico, se fico sei que não vou.
É quando o corpo tem que produzir a cortisona, para quebrar os hormônios desnecessários que intoxicam todo organismo. Isso tudo provoca muito cansaço, aquele cansaço sem que a pessoa não tivesse feito nada.