Chegou-me a solicitação para atender uma criança de quatro anos que o pediatra recomendara atendimento psicológico. Não sendo minha especialidade quis recusar, mas era irmã de uma colega de trabalho que insistia na solicitação. Dizia que sua irmã, a mãe da criança, estava desesperada porque o filho já estava uma semana sem evacuar e chorava muito. Resolvi então ouvir a mãe, pelo menos para um encaminhamento a outro profissional.
Era uma terça-feira. Na segunda-feira da semana anterior a mãe levara o filho a um pediatra que analisando pesos e medidas em relação idade, resolveu que o menino deveria entrar em um regime alimentar para redução de peso, pois estava com excesso de 30%. Prescreveu a dieta.
Seguindo as instruções médicas, a mãe cortou todos os alimentos proibidos e fez com que a criança passasse a ingerir somente os alimentos permitidos e nas devidas quantidades. Foi um desastre. O menino chorava o tempo todo porque queria comer. No terceiro dia, na quinta-feira, os choros foram acrescidos da reclamação de dores. Achava que era manha, dizia a mãe, mas percebi que ele reclamava de dores na barriga, mas não ia regularmente ao banheiro como já era de seu costume. A mãe relatou que tentou levá-lo ao banheiro onde a criança chorava dizendo que não saia nada, e doía. Assim foram os dias seguintes.
Na segunda-feira, dia do médico naquele serviço, voltou com a criança para uma reavaliação. O médico rapidamente diagnosticou: Ele não tem nada, isso é problema psicológico. Procure um psicólogo.
Este é um procedimento comum entre os médicos, não só pediatras. Por não terem informações sobre o que seja a psicologia e o que pode fazer, cometem tais absurdos. São raros os profissionais de medicina que conhecem alguma coisa de psicologia, a não ser aqueles que já passaram por alguma terapia. Os cursos de medicina não privilegiam esse tipo de estudo interdisciplinar que seria muito importante. Quanto muito há matéria obrigatória de psiquiatria, que muitos fazem questão de esquecer logo depois da prova. Muitos clientes, quando chegam a ir ao serviço de psicologia, chegam assustados com medo de “estar ficando louco”.
Voltando ao caso. não é fácil encontrar psicólogo em plantão no serviço público, mas a mãe tem uma irmã funcionária no hospital e conseguiu chegar a mim para solicitar o atendimento. Minha área é DST/Aids, mas era o que ela conseguira.
Procurei então saber da história do menino. É filho temporão. O pai tem 52 anos, a mãe 45, um irmão de 20 anos e uma irmã de 18 anos. Mora nos fundos da casa da avó, viúva, 72 anos. Imaginei como esse menino devia ser tratado nesse meio tão adulto. não me espantei com o relato de estar “gordinho”. A mãe zelosa da orientação médica como a melhor coisa para a criança, entrara em processo ansioso com dó do sofrimento do filho, mas seguiu risca todas as orientações médicas. O filho chorava de um lado e a mãe de outro. O sofrimento aumentou com a retenção das fezes pela criança que então entrava em desespero só em pensar na tentativa de defecar, pois dizia estar doendo muito.
Numa ligação rápida a um colega médico obtive a sugestão para utilização de um determinado supositório para desbloqueio físico imediato. Da minha parte, com a mãe ansiosa e cheia de culpa, depois de acolhimento em ouvir toda a história e procurar orientação médica, resolvi fazer uma sessão de relaxamento e orientar para atitudes de afeto e diminuir a sensação de culpa. A mãe queria uma explicação sobre o “problema psicológico” do filho. Será que era culpa dela, ele estar ficando louco? Isso deixaria traumas? Seria possível corrigir? Precisaria levar o filho a um tratamento?
Mesmo não sendo minha área de atuação eu tinha que fazer alguma coisa. não podia apelar para explicações psicossomáticas, mecanismos de defesa, ou qualquer teoria psicológica. Lembrei da história do urso que retém tudo que come no período que antecede ao inverno, e com isso engorda, pois sabe que vai ficar muito tempo sem ter o que comer; é um mecanismo de reservas. Arrisquei dizer que, na impossibilidade da criança naquela idade de entender o benefício (se é que há) do regime alimentar, pensando que iria passar fome, o próprio organismo resolveu reter tudo para não faltar depois. A complicação acontecera com o endurecimento das fezes no reto, causando dor nas tentativas de defecar. A questão da massa endurecida seria resolvida com o supositório, a regularidade intestinal tentaríamos recuperar com a atenção e o carinho da mãe. Recomendei trocar o sentimento de culpa e a ansiedade por uma atitude de respeito e atenção criança suspendendo o regime forçado. Quando a criança voltasse ao normal poderia começar uma reeducação alimentar, não na mesa, mas a partir da feira, das compras.
Sugeri que passasse na pastelaria da esquina e deixasse que o menino comesse o que quisesse.
Na semana seguinte a mãe voltou. Pediu para iniciar uma terapia dela própria nas questões e autoestima e da ansiedade, pois “aquela conversa resolvera tudo” com a criança. O “gordinho” estava feliz de novo e a mãe interessada em terapia, sem achar que estava louca.
A releitura psicanalítica.
Estudando agora um pouco dos conceitos da psicanálise, voltou o caso a lembrança. Resolvi fazer uma leitura psicanalítica que não poderia ser outra coisa senão uma série de perguntas. Para tanto tomamos por base um texto de Marilena Chauí onde faz um resumo sucinto dos conceitos de Freud:
Princípio do prazer: querer imediatamente algo satisfatório e querê-lo cada vez mais.
Estaria esta criança se vendo privada de seu prazer de comer ao serem subtraídos todos os seus alimentos preferidos, tanto em quantidade como em qualidade? O clima doméstico, em relação criança rodeada de adultos, era calcado no fornecimento de tudo que a criança pudesse querer ou em oferecer substitutos comestíveis até para agradar a criança quando seus desejos fossem outros e não quisessem ou não pudessem fazer realidade.
Princípio da realidade: compreender e aceitar que nem tudo o que se deseja é possível, que se for possível, nem sempre é imediato, que nem sempre pode ser conservado e muitas vezes não pode ser aumentado. O princípio da realidade é o que nos ensina a tolerar as frustrações.
O sofrimento da criança, pela repressão no ato de comer, estaria relaciona sua falta de capacidade em simbolizar o valor do processo de regime alimentar? Com um desenvolvimento do ego ainda bastante infantil, sofrendo de um lado toda pressão de um id incontrolável e de outro todo controle do superego ainda bastante materializado na presença da mãe e do médico, a criança elabora os mais tristes destinos de quem é submetido a tais privações. O princípio de realidade, pela internalização do superego, ainda é muito tênue, todos são ameaças sobrevivência e se faz necessária a luta contra Thânatos. A tolerância s frustrações ainda está pouco desenvolvida em função dos procedimentos da família em, até então, atender todas as suas solicitações e até mesmo antecipar suas manifestações de desejo.
Fase oral: o prazer vem do ato de comer ou sugar, da ingestão de alimentos; as zonas erógenas principais são os lábios e a boca; os objetos escolhidos são os seios e seus substitutos (dedo, chupeta, objetos que se possa sugar, alimentos). A prova de que a fase oral não desaparece para muitos de nós, mas que realiza uma fixação, está na existência dos fumantes, dos que gostam de beber, declamar, fazer discursos e no chamando sexo oral.
Num ambiente adulto, onde só existe uma criança, tudo é voltado para o atendimento dos desejos infantis com o mínimo de confronto. É mais fácil administrar as relações com uma criança quando tudo o que ela quer é se ocupar com sua oralidade. A disponibilidade de doces e salgados suficientes para atender o princípio de prazer é mais confortável ao adulto que a reação das crianças em contato com o princípio da realidade. Como diz o poeta: Hoje, eu quero paz de criança dormindo. Criança acordada dá muito trabalho e nada melhor que a criança que “come e dorme”. Estatísticas atuais, nos Estados Unidos, apontam para o problema sério de obesidade numa população infantil onde mais de 30% está acima dos padrões, e indicam a evolução do problema tanto em números percentuais quanto em agravamento do quadro clínico daquela população.
Fase anal: a fonte do prazer é expelir ou reter as fezes; órgão privilegiado do prazer ou zona erógena é o ânus; são substitutos prazerosos das fezes, o barro, a massa de modelar, a massa de pão ou bolo, etc. A fixação dessa fase na vida adulta aparece nos pintores, escultores, nas pessoas perdulárias ou generosas, nas pessoas avarentas, e no chamado sexo anal.
O primeiro confronto com a realidade palpável, com a noção de individualidade, de desenvolvimento do ego, é o momento em que a mãe começa a negociar a eliminação das fezes pela criança. Até então a criança só chorava ou sorria em troca de algum carinho ou alimento, mas a sensação de troca não estava internalizada, agora percebe que tem uma matéria específica, as fezes, como objeto de troca. É o momento em que a criança consegue aprender o que seja uma troca. Na primeira vez que usa o piniquinho ganha uma festa, e continua ganhando festas e presentes todas as vezes que deposita suas fezes num lugar privilegiado pela mãe. Na primeira vez que fizer diferente vai perceber o princípio da realidade, a repressão, a cara feia, as demonstrações de desaprovação, as penalidades e as ausências punitivas. No caso em estudo poderíamos dizer que o inconsciente da criança exercitou o poder de troca, mostrando o seu movimento de subverter a ordem estabelecida para confrontar o poder materno de repressão?
Fase fálica ou genital: a origem e o lugar do prazer (zonas erógenas) são os órgãos genitais, há gosto pela masturbação e é o momento do exibicionismo e da curiosidade infantis. É nessa fase, entre os três ou quatro anos, que Freud localiza o surgimento do complexo de Édipo que permanecerá latente até o fim da puberdade quando deverá resolver-se (ou não).
Poderia esta criança estar internalizando um movimento de rejeição, de afastamento do carinho e do provimento materno que induziriam a uma expulsão do seu paraíso terreno, do seu principado iniciante? Seria um movimento inicial de confronto com a autoridade do pai (e do pediatra) que o levaria ao sentimento de afastamento do seu seio provedor? Teria esse processo condições de promover traumas significativos que refletiriam no complexo de Édipo a ser confrontado anos depois? Tudo isso é para mim ainda meio obscuro e só restam indagações a serem trabalhadas até o final do curso, ou além dele.
Uma das maiores descobertas de Freud, além do sentido da sexualidade ampliada e não confundida com um instinto, da sexualidade infantil e da ideia de que a repressão da libido e não a própria libido a causa dos distúrbios físicos e psíquicos, é a descoberta de um fundo invisível, aparentemente surdo e mudo, designado por ele com o nome de inconsciente. A psicanálise foi criada para alcançar, para fazê-lo falar e para saber escutá-lo.
Eis aí uma suposição que causou preocupação na mãe da criança quando da indicação do psicólogo para cuidar do seu filho. Estaria a saúde mental de meu filho comprometida por alguma coisa que eu não sei o que é? É que ela diria, ou o que quis dizer quando perguntou se aquele problema poderia causar algum trauma no futuro do filho. Eu não saberia dizer a resposta, não tenho noção da capacidade de simbolização desta criança, que aliás nem vi. Não saberia dizer o quanto o seu inconsciente trabalhou diante a repressão física pela negação da satisfação oral dos alimentos preferidos em quantidade e qualidade costumeiras. Parece-me difícil afirmar o quanto repressão alimentar pode representar em termos de repressão da libido em níveis de sexualidade, em que intensidade o inconsciente elaborou mecanismos associados a repressão da sexualidade em termos de aceitação ou rejeição. Poderia pensar que o inconsciente da criança entendeu o controle e a negação de alimentos como um movimento de rejeição de sua individualidade, uma intencionalidade em atingir o seu princípio de prazer?
O inconsciente não é uma coisa nem um lugar, mas uma energia e uma lógica em tudo oposta lógica da consciência. Freud dizia que o inconsciente desconhece o tempo, a negação e a contradição. Essa lógica peculiar do inconsciente faz com que suas aparições não sejam vistas nem compreendidas imediatamente pela consciência, que opera noutro registro. Oferece-se de modo fragmentado, disfarçado e enigmático, maneira de uma charada ou de um jogo de advinha.
Poderíamos concluir então que embora não fosse domínio consciente da criança, a somatização de um descontentamento, de uma repressão, repercutiu na retenção das fezes? A criança não sabia o que estava fazendo, mas estava sob controle dos ditames de seu inconsciente. Da mesma forma, quando percebeu o retorno do seio bom, os carinhos e afetos da mãe, deu por vencida a sua batalha. O relaxamento do superego (no retroceder da mãe) promoveu um espaço para o prazer egóico e a reconquista do espaço narcísico como centro da atenção e dos afetos da casa.