Lembrei-me agora de uma história que nunca escrevi, não achava que houvesse ali alguma coisa que pudesse interessar a alguém. No entanto, diante a tantas “vítimas da sociedade” que se acham no direito de tirar do outro o que lhe apetece, resolvi escrever sobre a vítima que fui dessa sociedade injusta.
Minha mãe costurava fardas para o exército. Uma vez, ou duas, por mês, tinha que ir até o quartel na Lapa (em São Paulo) para levar sacos de roupas costuradas e trazer sacos de panos para serem costurados. Eram dias em que nós ficávamos sozinhos em casa o dia todo, eu com 6 anos, minhas irmãs, uma com 4 e outra com 2 anos. Lembro de uma vez que ficamos sozinhos e sem comida. Quando a mãe chegou, passado já das 5 horas da tarde, chegou perguntando se estávamos bem. Reclamamos que estávamos com fome, pois não tínhamos comido nada o dia todo. A mãe estranhou a reclamação, pois tinha deixado um caldeirão cheio de batata doce cozida.
Reclamamos: “Mãe, táva tudo estragado”. Foi quando ficamos sabendo que havíamos jogado fora as batatas doces roxas, que não conhecíamos.
Fosse hoje, seríamos “resgatados” pelo conselho tutelar.
Em 1956, eu tinha sete anos e fui colocado na escola.
As cadeiras escolares eram carteiras duplas e meu colega do lado, o Jerônimo, tinha camisa branca e calça comprida, sapato e até guarda chuva. Tinha bolsa de couro e lápis de cor. Eu não tinha sapatos, usava sandália de pneu; minha calça (curta) era de saco tingido de azul e a camisa branca era de saco alvejado. Minha bolsa era um embornal, que para variar era de saco também.
Quando, hoje, falo saco, muita gente pode não entender do que estou falando. Era muito comum, naquela época, utilizar o pano do saco de farinha de trigo, isso que hoje é usado como pano de chão, para fazer roupa. Alguns eram alvejados ou coloridos para encobrir ou tirar as letras do saco, a marca da farinha, outros nem se ocupavam disso e faziam roupas com as estampas originais.
Voltando ao que interessa, a razão de contar essa história não é o saco de algodão que embalava a farinha de trigo e depois virava roupa, é o fato que o Jerônimo era “da Caixa”. Isso queria dizer que ele recebia “da Caixa”, o lanche, os cadernos, os lápis, os livros. Eu não era “da Caixa”, quando tinha pão, levava lanche de pão com banana ou pão com almeirão, mas nem sempre tinha pão.
O que importa mesmo de tudo isso, dessa história, é que eu pedia para minha mãe ir à escola para me colocar “na Caixa” e ela nunca aceitou, pois dizia que a gente não era pobre, a gente tinha o que comer. Tinha polenta todos os dias, feijão com arroz também nunca faltou. Às vezes faltava dinheiro para o açúcar, mas tinha erva cidreira na linha do trem, a gente ia buscar para fazer “cardo”. Aos domingos podia ter alguma carne, aos domingos podia ter macarrão com queijo. A gente nunca foi pobre!
A caixa de lápis de cor do Jerônimo era de 12 lápis inteiros, enquanto minha caixa era de 6 lápis pela metade. Eu tinha inveja do Jerônimo. Recentemente importei da China uma caixa de lápis com 72 cores; até agora, não utilizei, foi só para matar a vontade.
Por falar em lápis de cor, lembro agora de um dever de casa que era pintar uma árvore, mas eu deixei para fazer no último momento, de noite. Não tinha eletricidade, a luz era de lamparina de querosene. Na manhã seguinte, na escola, fui ver que tinha pintado de roxo o tronco da árvore, pois na luz da lamparina não conseguia diferenciar bem as cores.
Ainda sobre lápis de cor, lembrei de outro fato. Aos dez anos, já no seminário, pintei uma paisagem bucólica, uma casinha a beira da estrada com uma montanha ao fundo. Ao lado da casa, uma árvore. Um colega achou muito bom e perguntou por que eu não pintei a paisagem, respondi que não tinha lápis de cor. Ele emprestou seus lápis de cor e eu passei de leve uma borracha nos traços do lápis preto e pintei com os coloridos por cima. Aí sim ficou bonito, acabou exposto no quadro da classe e fiquei com fama de desenhista.