Pedro Santo Rossi (2003)
- Comecei por perguntar:
o que é aprender, o que é ensinar?
Saber mesmo, eu não sei, desconfio.
Por não saber, silencio.
Já tentaram me dizer, que não se ensina, se aprende.
Não ouvi.
E não entendi por que tem tanta gente para ensinar,
quando não se ensina, só se aprende.
Não aprendi, não sei ensinar.
Quisera saber.
Quisera aprender para poder ensinar;
aprender como ensinar; aprender como aprender.
Disseram que aprender se aprende aprendendo, como viver se vive vivendo.
Vivi, e vivendo não aprendi o que seja aprender.
Quisera aprender a ensinar o viver;
mas vivo só tentando aprender.
Quanto mais vivo, quanto mais estudo, quanto mais tento aprender…
Menos aprendo o que seja ensinar.
Vigotski, no início do século XX, apresentava a aprendizagem como um processo interativo, um aprender fazendo, uma conjugação única da teoria e da prática, uma construção coletiva, pois cada um dependia do olhar do outro e se constituía com o outro. Educação era então, para ele, um crescimento pessoal e social, uma interação. Como não se podia ensinar, cabia ao professor ser o organizador do ambiente de aprendizagem. Dizia que a ciência ainda não havia chegado a dados e descobertas que permitissem encontrar a chave da psicologia do professor, pois só dispunha de fragmentos não organizados e por isso aquelas dificuldades na profissão do ensinar.
Não poderia ele nem imaginar sequer a possibilidade de, no século seguinte, os fragmentos serem em maior quantidade e complexidade sem que a ciência desse conta da chave pretendida da psicologia do professor.
Não há mais como ler tudo que se publica sobre educação, ensino e aprendizagem, não só pela quantidade de volumes, mas principalmente pelo preço das obras em relação aos salários de professores, uma questão de “mais valia” e de “valor agregado”. E nem é tanto “valor” assim, pois geralmente nada acrescenta, é mais uma obra de denúncia (como esta) ou de “sonhos de uma noite de verão” que nenhum professor poderia levar para a sua prática diária.
Vigotski imaginava, como Trotski, poder mudar a sociedade a partir da educação, pois a inspiração marxista não só o fazia interpretar o mundo de uma forma diferente da herança czarista, naqueles primórdios da revolução russa, mas transformar o mundo para uma sociedade sem classes, sem privilégios, sem religiões. Ao invés de obedecer aos ditames da história dos dominantes, a nova geração passaria a fazer a sua própria história e nesse processo o professor seria um protagonista especial, pois estaria, no mínimo, estimulando uma relação produtiva.
A revolução marxista não vingou o suficiente para fazer a história que pretendia, trazer a igualdade para todos, dar ao professor tal função estimulante. Ao contrário, de preceptor privilegiado na aristocracia, modelo e medida de conhecimento, o professor deixou de ser mestre para tornar-se sim, operário braçal para pequenas obras diante à grandeza de tudo mais. Não se trata de exigir que qualquer professor seja um mestre, mas de ver que a função de mediador não implica em realizar milagres, mas intermediar o possível com o que está disponível. Trabalhar a realidade plausível, no momento e no local, isto é, o tempo e o espaço do real do aluno, não os sonhos delirantes de um programa de gabinete.
De nada adianta discutir a pós-modernidade na saúde quando a comunidade ainda não absorveu os ensinamentos de Pasteur, e isso só é possível dar-se a ver ao professor, pois é quem está na linha de frente, e devidamente preparado para tal empreendimento.
Consoante ao desenvolvimento das ciências em geral, Vigotski imaginava o desenvolvimento da pedagogia em particular. Vaticinava: “No futuro, todos os professores basearão seu trabalho na psicologia, e a pedagogia científica se transformará em uma ciência exata”. E reivindicava para o professor uma formação científica para o exercício da profissão, e que além da matéria deveria dominar a técnica do seu trabalho. Constatando que a maioria dos professores, de sua época, não sabiam bem nem a matéria que ensinavam, eram egressos de outras atividades, tais como soldados depois da guerra [lembre-se que estava imediatamente após a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial], Vigotski pleiteava que no futuro os professores seriam os profissionais dos mais diversos campos. Estariam em classe, como professores, profissionais tais como engenheiros, marinheiros, atores, operários ou políticos, trazendo suas próprias experiências e conhecimentos de vida, mas alertava que não poderiam estar despreparados para o exercício da atividade de professor, não seriam “diletantes”.
No entanto, ainda hoje se acredita, em alguns meios acadêmicos, que em se formando um pesquisador, estar-se-á formando, automaticamente, um professor. No ensino da saúde (como em outras áreas também) ainda ocorre atribuir aulas no curso de formação a profissionais que nunca tiveram qualquer interesse na preparação didática. Alguns só repetem o que já publicaram e outros chegam a ler (e mal) as próprias publicações. Vigotski já dizia que tais professores poderiam, simplesmente, serem substituídos pelos livros da estante, aulas que poderiam ser plenamente substituídas pela leitura de tais publicações.
Há até quem seja mais “moderno”, entenda que não se ensina, e que o aluno é quem aprende; e por isso nem dá aula, manda o grupo se reunir para ler publicações e discutir. Restaria alguém dizer a esses que não há mais a necessidade de tal professor. “Atualmente [Vigotski dizia isto em 1923], com a crescente complexidade das tarefas exigidas ao professor, a quantidade de recursos que se exigem dele se tornou tão infinitamente diversa e se complicou tanto que, se um professor desejar ser um pedagogo cientificamente formado, vai ter que aprender muito”. Dizia isso baseado numa psicologia científica ainda nascente, numa ciência em ebulição quando o fenômeno maior ainda era o aeroplano.
O que diria hoje, oitenta anos depois, quando o aeroplano é artigo de museu e a cartilha da escola continua a mesma?
Na era da Internet e do Genoma, ser professor não é mais uma questão de tarefas e procedimentos, mas de um posicionamento teórico fundamental. Realizar tarefas à imitação de procedimentos professorais, à moda antiga, dar aulas, já não atende os propósitos das novas gerações nas novas disponibilidades de informação. A questão não é mais a falta de informação, mas de excesso de dados. Quando se apresentam muitas teorias é porque ainda não se descobriu uma lei. Assim é na educação, muitos caminhos, poucos progressos.
Não há um jeito de ser, mas de consumir tudo que aparece, quanto mais novo melhor, sem que se pare para pensar o homem que queremos ter na nossa sociedade e para que lado vai o trabalho da educação. No entanto, numa visão rápida do que poderiam ser os campos da didática, muitos se acham suficientes em seus conhecimentos específicos para assumirem a formação educacional de outros, tal como uma vizinha se arvora de médico ao receitar um remédio qualquer, “porque conhece na prática”.
Vigotski já dizia que a ciência nunca dirige a prática e concordava com W.James em afirmar que a psicologia é uma ciência e o ensino uma arte. Da mesma forma como a classe médica está a defender a regularização do “ato médico”, caberia aos pedagogos a defesa do “ato pedagógico”, pois na dicotomia entre a teoria e a prática, se pratica a pedagogia sem nenhuma teoria consistente, sem qualquer cuidado com “procedimentos” (para usar a linguagem médica) mais básicos. O conhecimento científico específico, seja na medicina ou na psicologia, não autoriza o médico ou o psicólogo a ser professor da matéria, pois o ensino não é só saber o assunto, demanda algo mais específico da educação, a didática.
Um professor de medicina dizia: Posso ensinar a fazer uma apendicectomia em dois minutos. Meça dois dedos a partir da virilha, faça um corte de dois a três centímetros. Você encontrará o apêndice na curva do intestino grosso. Extraia o apêndice e dê um ponto ali. Feche o corte externo com três ou quatro pontos. Está feita uma apendicectomia, mas se der algo errado, uma hemorragia ou uma infecção, terá que estudar mais de seis anos numa escola médica para tentar entender o que aconteceu.
Os erros da educação, resultado da prática indevida da pedagogia, vão aparecer mais adiante na sociedade, e nos consultórios psicológicos. Mas se por um lado se critica “o exercício ilegal da pedagogia” quando se denuncia a falta de formação didática dos profissionais pesquisadores, não podemos esquecer o outro lado da questão que Vigotski já denunciava em sua época: “Em suma, só a vida educa e, quanto mais amplamente a vida penetrar na escola, tanto mais forte e dinâmico será o processo educativo. O maior pecado da escola foi se fechar e se isolar da vida mediante uma alta cerca”.
E ainda hoje o conselho de professores, uma reunião de professores universitários, se chama claustro, nada mais justo e ilustrativo para um ambiente fechado tão separado do mundo real.
A dicotomia então é entre a realidade e a fantasia que faz da escola uma instituição reprodutora de uma cultura repressiva, onde é mais comum o sofrimento com os ritos de passagem do que o prazer com o ganho do saber. Nada de inovador na apreciação de Vigotski sobre a ociosidade da escola da época, pois já no século XVII se denunciava o distanciamento da escola quanto à vida: “Não basta conhecer a ciência ensinada no colégio; há outra ciência que nos ensina como devemos nos servir daquela…, uma ciência que não fala nem grego nem latim, mas que nos mostra como utilizar essas línguas. Encontramo-la nos palácios… entre príncipes e os grandes senhores. Ela esconde-se também nas ruelas de mulheres, deleita-se entre gentes da guerra, e não despreza os comerciantes, os lavradores ou os artesões. Ela tem por guia a prudência e, como doutrina, as conversações e a experiência das coisas.” Maréchal de Caillière, La Fortune des gens de qualité… 1661.
Infelizmente pouco mudou ao longo dos séculos. Ainda é proibido falar de mercado dentro da escola, pois preparar para o mercado é atividade menos nobre [coisa de pobre]. Como se todos fossemos os “nobres” dos séculos passados que viviam somente da exploração do trabalho alheio. No entanto se reclama da falta de reconhecimento do mercado quanto ao valor da escola. Ora, só se reconhece o que se faz conhecido. Produtividade objetiva é outra fala proibida, como se acreditasse viver num paraíso e não houvesse necessidade de produção para sobrevivência. Na verdade há até muita produção, sempre para consumo interno, criticando outras produções, sem que se produza para exportação, para consumo de outras áreas do saber, para áreas da vida real.
Vigotski falava num processo de aprendizagem como acomodação das tensões entre as diferenças dos mundos, interno e externo, do indivíduo. Nesse sentido, “Quanto maior é a tensão nesse sentimento de desconforto e, ao mesmo tempo, quanto mais complexo é o mecanismo psíquico do homem, mais naturais e irresistíveis serão seus ímpetos pedagógicos e com maior energia vão abrir passagem para fora”.
Para tanto é necessário que coexistam, teoria e prática, mundo real e mundo ideal, professor e aluno, ciência e filosofia, tudo num processo dialético de confrontação e crescimento. É necessário que haja no aluno a curiosidade da infância e o inconformismo da juventude, acrescidos da crença nas possibilidades de mudanças, pois a estrutura rígida e excludente que se afigura não permite esperanças. Só há tensão quando as forças opostas são próximas da equivalência e sugere ímpetos de confronto, pois quando uma força é muito maior que outra, o que há é a opressão, e o instinto de sobrevivência promove a acomodação.
A escola, longe de ser desafiante, tem sido frustrante. Debalde toda cientificidade de suas propostas, Vigotski não deixa de lembrar e explicitar que a razão pura não educa ninguém, é necessária a comoção social, o desconforto pessoal, aspirações para a criação de uma nova realidade. Diz que, embora todo valor científico do conhecimento, o professor não pode deixar de ser um artista, pois educar é propor uma criação constante, um recriar contínuo, é trabalhar com o incômodo, pois a síntese é efêmera e sempre surge uma nova antítese para mobilizar as forças do homem rumo a uma criação ininterrupta. Talvez seja o que realmente sobrou para o professor, ser artista, dar conta de entreter a plateia (isso me lembra Grimaldi) enquanto a academia não chega a uma conclusão do que seja a educação, enquanto a política não define os direitos e deveres do cidadão, enquanto a economia globalizada não acabe com a sociedade mundial e voltemos a pequenas comunidades tribais onde o professor voltará a ter o seu lugar de mestre.
Trágico? Não, incômodo. O incômodo que impele à procura do que seja essa coisa do aprender e do ensinar, pois enquanto nas áreas técnicas se trabalha com a literatura recente, a revisão do último ano, quanto muito, na educação ainda se discute Comenius, Hobbes e Rousseau. Enquanto a óptica, na física, descobre galáxias, conta estrelas, explora moléculas, conta átomos, o olhar educacional ainda não encontrou um caminho para a escola, contrariando Trotski que imaginava a pedagogia como a rainha do pensamento social.
Em resumo, a atividade do professor não se beneficiou de todo desenvolvimento das ciências desde o início do século passado, pois a psicologia pedagógica não acompanhou 80 anos de progresso geral. Muitos indivíduos na função de professor, hoje, não estão muito diferentes da triste figura daqueles egressos dos quartéis, professores por falta de outra opção melhor.
Bibliografia: VIGOTSKI, L.S. Psicologia pedagógica.. Porto Alegre: Artmed, 2003
Trabalho apresentado na Especialização em Ensino Superior em Saúde, no CEDESS da Universidade Federal de São Paulo em 2003.