O gosto da manga

 

Era quase Natal de 1965, aproveitei o dia de feira para procurar qualquer coisa. Sem saber o que queria, passeava pelas bancas olhando as frutas, as cores, as ofertas.

Debaixo de uma banca de manga, onde eram jogadas as frutas reprovadas na seleção, algumas podres, outras nem tanto, saiu como um corisco, qual um gato ladrão, um garoto assustado com o “chispa” do feirante.

Sem ter o que fazer, disfarçadamente, segui o garoto para ver no que ia dar.

No fim da feira, onde os caminhões ficam estacionados, o garoto procurou uma guia de sarjeta para se sentar, descansar da corrida. Ao longe, de uma distância suficiente para observar, parei para olhar.

Garoto de aparência traquina, olhar maroto, deu-se ali por seguro e se acomodou tranquilamente.

De calção, camisa sem botão, com a presa na mão, começou olhar a manga, o troféu da rapinagem. Olhou todos os lados da fruta, apalpou, apertou a casca. Olhava a manga num estudo estratégico para total aproveitamento. Começou a passar a manga na camisa, limpando cada parte da casca. Ficou tudo um brilho só.

Apalpou mais um pouco e definiu o ponto de começo. Mordeu e cuspiu, uma, duas, três … mais vezes, até que da manga surrada sobrou apenas a parte boa. Olhava para a manga enquanto escorria pela mão um líquido amarelo. Lambia para não desperdiçar. Agora, uma mordida de leve, descolava um pedaço de casca. Da parte de dentro da casca saboreou o primeiro sabor da manga.

Eu vi no rosto do garoto, o gosto da manga.

Aos poucos, alheio ao mundo todo em volta, tira por tira, foi descascando a manga e saboreando o que vinha com a casca. Em pouco tempo, nas mãos melecadas de tanto caldo, sempre lambendo para não desperdiçar, sobrava a manga, ou o que sobrara da manga. Com ânimo já bem menos afoito, quase que absorto, começa saborear cada lado da presa indefesa. Já não mais mordia. Chupava a fruta e lambia das mãos o líquido que escorria.

Eu via no rosto do garoto, o gosto da manga.

Em pouco tempo, da fruta só sobrou o caroço, branco, sem nada mais a oferecer. Nem os vãos dos dedos nada mais ofereciam.

Eu via no rosto do garoto, a satisfação do gosto da manga.

Levantou-se e num gesto moleque, lançou o caroço para longe, terminando de limpar as mãos na camisa sem botão.

Sem mais ter o que observar, voltei para a feira. Comprei três das melhores, maiores e mais caras mangas que se podia comprar.

Em casa, na cozinha, lavei uma manga, peguei um prato e uma faca. Descasquei-a toda; ali estava uma maravilha da natureza. Fatia por fatia, fui buscando encontrar na manga, o gosto que vira no rosto do garoto, mas … nada. A manga era talvez uma das melhores que já experimentara na vida, mas não tinha o gosto que vira no rosto do garoto.

Pensei comigo mesmo: Talvez o gosto esteja em me sentar no chão, comer sem lavar, sem descascar, sem faca, sem prato, sem cuidados, deixando escorrer pelas mãos, lambuzando-me todo.

Mas cadê coragem?

Querendo ainda sentir na manga o gosto que vira no rosto do garoto, fui até os fundos da casa escondido de todos e tentei. Consegui descascar com os dentes, lambuzar as mãos, o rosto e boa parte da roupa.

O gosto ficou melhor, mas não era o gosto que vira no rosto do garoto.

Com a terceira manga na mão, pensei ir até o local em que o garoto deliciara aquela manga, no meio dos caminhões, no meio fio da calçada.

Ao sair do portão, dei de cara com um outro garoto, de calção, camisa sem botão, que olhou para minha mão e viu a manga. Meu olhar cruzou com aquele olhar pidão; lancei para o garoto a manga que sobrara:

Espontaneamente, da minha boca, saiu quase engasgado um:

– Feliz Natal

Ao pegar ainda no ar a oferta imprevisível, e olhar o presente que ganhara, o garoto me fez ver de novo:

no rosto do garoto, o gosto da manga.

 

PS. Naquele tempo, ainda não era comum o uso de camisetas. As camisas tinham botão, quanto novas, e, aos poucos, iam perdendo os botões. Camisa sem botão denunciava camisas bem velhas, coisa de pobres que nem repregavam os botões.

 

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