Entre meus tipos favoritos, de minha infância, está o Butuca. Não lembro exatamente qual era o seu nome, mas algo me faz pensar, uma tênue lembrança, que seria João Batista da Silva. Dizia, que sua avó, ainda viva naquele tempo, fora escrava.
Ele trabalhava, na bilheteria da estação ferroviária, era massagista dos jogadores de futebol do clube Nacional, o time da cidade. Era também o massagista de quem precisasse, pelo menos na minha vila, era quem se chamava quando tinha problemas, fossem machucados ou briga de vizinhos. Já contei sobre ele quando cuidou do meu joelho inchado, pelo coice de uma égua ( https://psirossi.com/cavalgada-no-mato/ ).
Atualmente, lembro dele quando vejo o cantor Péricles.
Butuca tinha um andar firme e calmo, como era calma sua voz, que nunca vi alterada. Todos os dias passava em frente nossa casa, na ida e na volta do serviço. Nunca o vi irritado, mas seus filhos morriam de medo dele. Quando ele estava na varanda de sua casa, eu e outros chegávamos para ouvir histórias, ele falava e ouvia tranquilamente, tratava a todos com respeito, mas seus filhos não se intrometiam nos assuntos; parecia que os assuntos de casa, eram da porta para dentro.
Era primo do Maranhão, o tocador de trombone (https://psirossi.com/meu-tipo-preferido-maranhao/ ).
Tinha autoridade incontestável entre os filhos e os vizinhos. Até diziam que ele “inspetor de quarteirão”.
Lembro de uma piada que ele me contou:
– Bom mesmo era aquele tempo de queima do café, a gente podia ir trabalhar de terno de linho branco.
Imaginei a cena; e aí ele emendou:
– Era só tirar o terno e ficar de calção para carregar os sacos de café. Todo mundo saia pretinho por igual.
Só contextualizando: Entre 1931 e 1944, o Brasil queimou literalmente 78,2 milhões de sacas de café exportável. Isso equivale a espantosos 10,3 bilhões de libras de café, uma quantidade que levaria 3,7 anos para os brasileiros consumirem hoje em dia.
Em Campo Limpo, onde hoje está a Krupp, era armazém da estrada de ferro, onde se queimou muito café.
Butuca morava no mesmo quarteirão, um pouco acima de nossa casa, eram doze filhos, entre os quais, o Oscar era o meu amigo, um pouco mais velho que eu.
Lembro do Ne que acabou casando com a viúva do Espanhol; Toledo que lutava box; João, o mais preto de todos, mais mirradinho, nem parecia irmão do atleta; acho que era Cida, a irmã mais velha entre as mulheres, praticamente a dona da casa; Roberto, uns três ou quatro anos mais velho que eu; Oscar, meu parceiro; Maria, que diziam seria com quem eu casaria; e, eu nem lembro mais do nome das crianças mais novas, algumas que foram irmãos de leite de meus irmãos mais novos (Paulo, Joana e Cosmo); minha mãe amamentou dois ou três deles, porque a dona Antônia, não tinha mais leite suficiente. Elza era a menina que levava seus irmãos para mamar na minha mãe.
Era 1955, quando comecei frequentar a casa do Butuca, para entre outras coisas, jogar futebol de botão. Na época o time campeão era o Corinthians, o que me fez ficar corintiano. Lembro que o rádio ficava ligado falando do baú da felicidade.
O Butuca era a única pessoa, que eu conhecia, que lia os jornais do dia. Voltava do trabalho, se sentava na varanda e começava folear os jornais. Lembro-me ainda falando do ladrão Meneghetti que andava pelos telhados.
Hoje, quando falam de preconceitos, falam das minorias, lembro que, na minha infância, os meus vizinhos negros eram maioria em qualidade de emprego, em força, em prestígio, em posição social, pelo menos naquela vila onde fui educado.