Interconsulta psicológica: o papel do psicólogo no Hospital-Geral.

O ensino da psicologia médica vinculado ao da interconsulta psiquiátrica pode propiciar a estudantes, notadamente aos do internato, e a residentes de medicina a oportunidade de observar a importância dos fatores psicossociais envolvidos na doença, bem como a influência da relação médico-paciente no comportamento e na evolução deste. (BOTEGA 2012, 44)

O termo utilizado como interconsulta psiquiátrica, ou psicológica, refere ao procedimento solicitado pelos médicos do hospital geral que percebem questões mentais possivelmente interferindo no tratamento do paciente. Pode haver um procedimento parecido com consultoria, onde o psicólogo ou psiquiatra é chamado para dar um parecer ou mesmo o procedimento de trabalho conjunto, com a permanência constante do profissional “psi” no meio de outras especialidades.

Segundo Botega (2012), nos Estados Unidos constitui uma especialidade denominada “consultation-liaison psychiatry”, consultoria e ligação e, em Portugal, o termo utilizado é “consiliar” (de consilio, conselho) e  “de ligação”.

O objetivo básico segundo Billings (citado por Botega, p.27) seria: “… melhorar a qualidade da atenção ao paciente, auxiliando na provisão de cuidados a todos os aspectos envolvidos na situação de estar doente e hospitalizado”.

No Brasil, o primeiro serviço de interconsulta estruturado e organizado sob a forma de um estágio de treinamento em um programa de residência média em psiquiatria aconteceu em 1977, no Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da EPM (hoje Unifesp). (BOTEGA 2012, 27)

No ano de 2003 a American Board of Specialties reconheceu a atividade com a denominação de psychosomatic medicine.

Em 1999, eu estava trabalhando como psicólogo das Clínicas Cirúrgica e Ortopédica, além da UTI, no Hospital Geral do Complexo Hospitalar do Juquery, Franco da Rocha, que, embora não fosse essa a sua origem, funcionava como hospital-escola. Por ali circulavam estudantes, residentes e professores da Faculdade de Medicina de Jundiaí em meio a funcionários públicos das áreas de enfermagem e administrativos, além de contratados para limpeza e segurança.

Um jovem dera entrada na urgência com 3 tiros de revolver no peito. Jovem forte dava todos os indícios de sobrevivência. Foram feitas as intervenções possíveis e necessárias; a recuperação parecia certa. Cinco dias depois, enquanto eu conversava com o jovem, percebi que ele começava ter dificuldades na respiração, azulava as mãos e lábios, virava os olhos e não conseguia falar. Chamei por ajuda; veio a equipe do centro cirúrgico, vieram os residentes, os internos, os enfermeiros; nunca tinha visto tanto esforço concentrado.

Encostei-me numa parede para observar o trabalho da equipe de socorro – foram duas horas de tentativas, ressuscitador, adrenalina, epinefrina, ventilação, tubos, etc. Mas tudo em vão.

O residente ficou apreensivo quanto ao momento de receber a familia. Pediu ajuda do psicólogo.

Aquela era hora de enfrentar a dor da família, promover consolo. Nunca ficamos tão unidos num mesmo propósito (médico, psicólogo, interno). Pensávamos o trabalho que teríamos naquele enfrentamento. No primeiro contato com a família – a expectativa. Foram olhar o corpo; alguns afagos, e nós ali esperando a explosão. Um casal se dirige para nós, como que fosse perguntar o porquê, e … a pergunta foi sobre os dados da certidão de óbito para efeito do recebimento do seguro.

Conforme Botega (2012, 24)“a interconsulta emerge de um conflito na relação entre médico e paciente, na qual interferem aspectos pessoais, familiares, culturais e institucionais”.

Certo dia, uma faxineira foi até a Clínica Cirúrgica para me dizer que na Clínica Ortopédica o médico estava brigando com uma paciente. Chegando perto dava para ouvir a gritaria dos dois lados. Ele dizia que iria colocar uma placa na perna dela; ela dizia que não iria deixar colocar.

Aproximei-me com jeito, coloquei a mão sobre o ombro do médico e comecei tirá-lo daquele quarto. No corredor eu disse a ele que ficasse tranquilo que eu iria conversar com a paciente.

Ela trabalhava na roça, plantando tomate, quanto escorregou e caiu provocando uma fratura exposta (tíbia ou fíbula, não me lembro do detalhe). O médico falava de uma placa (+/- 2cm) para fixação dos ossos quebrados, e a paciente pensava numa placa de carro que lhe envolveria a perna. Como eu conhecia a atividade de plantar tomates, o processo de amarração dos talos em estruturas de bambu, mostrei a similaridade com enxerto da placa e a paciente aceitou.

Acreditamos que, quando se solicita a interconsulta com o especialista na área mental, está ocorrendo uma crise envolvendo o relacionamento entre seres humanos, em que se incluem paciente e médico ou equipe de saúde. Essa crise pode decorrer, em certa medida, devido à necessidade de conhecimentos na área mental por parte do profissional que assiste diretamente o paciente. (CASSORIA 2012, 81)

1.1. A questão financeira

Uma questão prática que dificulta a atuação da interconsulta nos hospitais gerais é a falta da remuneração desse serviço que não está previsto na tabela SUS e nas tabelas dos convênios particulares. Uma demonstração de produtividade, ao gosto da administração financeira dos negócios da saúde, não permite contabilizar o atendimento do psicólogo ao enfermeiro, ao residente, ao médico de qualquer especialidade, e mesmo um psiquiatra. Na minha atividade enquanto psicólogo hospitalar essas “conversas” não eram contabilizadas como atendimento.

1.2. A questão de comunicação entre especialidades

Toda atividade técnica cria um jargão particularizado (até para o estabelecimento de uma área própria de domínio) que demandaria um glossário para intermediar a comunicação.   Botega explicita: “Alguns questionam se é possível a integração da psiquiatria à medicina geral sem que as áreas percam sua identidade”. (BOTEGA 2012, 29)

Conceitos de cuidados necessários de internação em função da gravidade do problema são muito diferentes entre psicólogos, psiquiatras e outras áreas da medicina. Expressões tais como: “quanto conseguir se alimentar, pode dar alta”; “quanto conseguir andar sozinho pode ir embora”; não são válidas para a psiquiatria nem para a psicologia.

1.3. A questão teórica

Sabemos hoje que as informações que obtemos ao avaliar um paciente nascem da interação entre a teoria que abraçamos e os fenômenos sob observação. São resultantes da visão de mundo de quem observa, com suas teoria e idiossincrasias, sendo os “fatos” descritos pelo sujeito. (BOTEGA 2012, 35)

Dependendo das bases teóricas sob as quais se entende a saúde, a interconsulta pode apresentar desenhos diferentes numa figura que ilustre a intersecção das atividades dos médicos de outras especialidades com os “psi”.

A introdução de práticas de saúde mental no hospital geral pode ocasionar uma relação tão frutífera quanto tensa, em que modelos assistenciais podem ser enriquecidos, mas também entrar em conflito, competindo pela hegemonia teórica e prática das ações de saúde. (BOTEGA 2012, 28)

Ao entrar no hospital geral, o psiquiatra corre o risco de, para ser aceito pela comunidade do hospital, ter que se moldar ao modelo médico tradicional, entendendo-se este como um modelo fortemente calcado na objetividade científica e no positivismo. (BOTEGA 2012, 29)

O encontro terapêutico consiste em uma conversação, um diálogo, ou seja, um encontro entre duas ou mais pessoa a fim de discutir, tocar ideias e estabelecer nexos. Tal encontro movimenta-se nessa conjunção de realidades individuais e condicionantes de relação interpessoal.  (BOTEGA 2012, 35)

Botega (2012) encerra seu primeiro capítulo apresentando um quadro de tarefas futuras para a atividade de interconsulta que podem ser traduzidas  (todas as tarefas) num conjunto de ações em busca de um poder. Poder esse que o psiquiatra perdeu ao sair do manicômio e se integrar ao hospital geral, dominado por especialidades diferentes das questões de saúde mental.

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