Identidade e funcionalidade

  1. introdução

“Conhece-te a ti mesmo”, aparece no frontispício do templo da Apolo, na Grécia Antiga (VI a.C); “Ser ou não ser, eis a questão”, aparece em Hamlet de Shakespeare (1564-1616); “quem é você, quem sou eu?” são questões que podem aparecer tanto nos devaneios cotidianos quanto nos compêndios de filosofia.

Tratar disso em partes ou num todo, é optar por esta ou aquela “teoria da personalidade” explicitada ou não nas mais diversas escolas e autores. Considerar ou discutir as divergências conceituais entre as mais diversas escolas de psicologia nos levaria a nos ater somente a isso por muito tempo, o que não é pertinente neste momento dos nossos estudos. Teremos então uma série, por vezes caótica, de recortes teóricos como referencial para nossa conversa sobre a individualidade e a personalidade.

Podemos resumir nosso planejamento de estudo para dois olhares, um sobre o documento de identidade (RG), o autoconceito, a identidade pessoal e outro sobre a carteira profissional (CTPS), a imagem pública, a identidade profissional.

  1. Individualidade

O termo indivíduo vem de indivisível, a unidade que se reconhece como tal, como diz Houaiss (2001): “qualquer ser concreto, conhecido por meio da experiência, que possui uma unidade de caracteres e forma um todo reconhecível.” E diz que a individualidade é: “conjunto de atributos que constitui a originalidade, a unicidade de alguém ou de algo”.

Epicuro (341-270 a.C) dizia que a felicidade só seria possível na intimidade do ser, no prazer simples nos limites da individualidade, no interior de si mesmo.

O filósofo dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), considerado o precursor do existencialismo, dizia que a subjetividade é a consciência de si mesmo e que o indivíduo só pode alcançar a realidade subjetivamente porque a subjetividade é a realidade, é a verdade. Conforme Gobbi (1998): “Kierkegaard aponta para a “ousadia de sermos nós-mesmos”, de sermos indivíduos, indivisivos e únicos”. Considerava a individualidade tão importante que ao se associar com o outro o indivíduo deteriora-se.

Segundo Piaget (1896-1980): “um fenômeno é sempre biológico em suas raízes, e social no seu ponto final, mas não devemos nos esquecer, também que, no meio, ele é mental”. (Evans, 1979:70) Vigotski (1896-1933) entendia que o homem, em um contínuo processo de interação dialética com o meio, no qual tanto influi quanto é influenciado, desenvolve-se. Pela internalização das práticas do seu meio, ocorre o desenvolvimento que impulsiona os processos relacionados às funções psicológicas superiores como: atenção, memória, linguagem, pensamento emoção, imaginação e motivação. (Iak,
2003)

Rogers utiliza o termo “estrutura de referência interna” para o self, o eu mesmo, o conceito que a pessoa desenvolve de si mesmo. O organismo em desenvolvimento num determinado contexto vai experienciar a si mesmo, tanto a partir de sua própria constituição biológica quanto pelas vivências na relação com o outro e com o ambiente. Segundo (Puente, 1970:124): “Seu ‘conceito de eu’ é formado de representações e de valores que têm uma dupla origem, a saber: a origem organísmica pessoal e a origem social exterior.”

Bock (2002:207) destaca:

É importante que tenha ficado claro que a identidade é um processo de construção permanente, em contínua transformação – desde antes de nascer até a morte! – e, neste processo de mudança, o novo – quem sou, agora – amalgama-se com o velho – quem fui ontem, quando era adolescente, criança!

 

  1. Personalidade

Persona é a máscara que ator utiliza para representação, para a montagem de um personagem, para se mostrar como algo que queira parecer. O ator não é, e sabe que não o é, mas se mostra para os outros como se fosse. Quando o ator fica pensando que é mesmo o personagem que interpreta, todos o chamam de louco. Loucura seria isso: confundir o indivíduo com o personagem.

Persona, na teoria de C.G. Jung (1875-1961), é a “personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, é uma variante às vezes muito diferente da verdadeira”. (Houaiss, 2001)

No preâmbulo do seu livro “Teorias da personalidade”, Duane P.Schultz (2004) diz da importância da estrutura de personalidade:

“Tudo que você realizou até aqui, as suas expectativas em relação ao futuro e até a sua saúde são influenciadas pela sua personalidade e as personalidades das pessoas com as quais você interage.” (p.xvi)

O dicionário Houaiss (2001) diz que personalidade é a “qualidade ou condição de ser uma pessoa”, “conjunto de qualidades que define a individualidade de uma pessoa moral” e diz mais: “o aspecto visível que compõe o caráter individual e moral de uma pessoa, segundo a percepção alheia” Notem que fala do aspecto visível da individualidade. E continua dizendo que a personalidade é: “aquilo que diferencia alguém de todos os demais; qualidade essencial de uma pessoa; identidade pessoal, caráter, originalidade” e “o aspecto que alguém assume e projeta em público; uma imagem” e encerra dizendo que é; “um conjunto de características que distingue uma pessoa, um grupo de pessoas, uma nação” ou ainda “conjunto dos aspectos psíquicos que, tomados como uma unidade, distinguem uma pessoa, especialmente os que diretamente se relacionam com os valores sociais”.

Perguntado ao Jung sobre a possibilidade do indivíduo ter duas o mais “personas”, respondeu que normalmente não se consegue administrar bem duas personalidades, mas que há casos de pessoas com até cinco personalidades diferentes. Disse que são casos comuns de uma dissociação sistemática da personalidade, diferente da esquizofrenia onde se apresenta a dissociação assistemática, ou caótica. (Evans, 1979:332)

4 – Glossário

Observação importante: Tenho utilizado conceitos psicológicos retirados mais do dicionário que de livros de psicologia. Isso tem uma explicação. Devido às divergências entre as mais diversas teorias, sempre haveria contraposição conceitual, daí a opção por um dicionário, considerado uma publicação neutra.

Existencialismo: conjunto de teorias formuladas no século XX, com forte influência do pensamento de Kierkegaard (1813-1855), que se caracterizam pela inclusão da realidade concreta do indivíduo (sua mundanidade, angústia, morte etc.) no centro da especulação filosófica, em polêmica com doutrinas racionalistas que dissolvem a subjetividade individual em sistemas conceituais abstratos e universalistas. (Houaiss, 2001)

Esquizofrenia: termo geral que designa um conjunto de psicoses endógenas cujos sintomas fundamentais apontam a existência de uma dissociação da ação e do pensamento, expressa em uma sintomatologia variada, como delírios persecutórios, alucinações, especialmente auditivas, labilidade afetiva etc. (Houaiss, 2001)

  1. Referências Bibliográficas

Evans, Richard I. Construtores da psicologia. São Paulo: EDUSP, 1979. 426 p.

Gobbi, Sérgio L e Missel, Sinara T. A Abordagem Centrada na Pessoa – vocabulário e noções básicas. Tubarão-SC: Editora Universitária Unisul, 1998. 272 p.

Houaiss, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro – Editora Objetiva, 2001 [CD]

Iak, Fátima Ali Zahra. Um estudo sobre os sentidos atribuídos ao aprender por pessoas com dislexia. São Paulo: Unimarco, 2004 [dissertação de mestrado]

P.Schultz. Duane. Teorias da personalidade. São Paulo: Pioneira Thomson, 2004. 530 p.

Puente, M. de la. Carl Rogers: De la psychothérapie à l’Enseignement, Paris: EPI. 1970, citado em Gobbi, 1998.

Anexo:
Morte e vida Severina,

de João Cabral de Mello Neto

– O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos, que é santo de romaria,
deram então de me chamar Severino de Maria;
como há muitos Severinos com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia,
por causa de um coronel que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela, limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, mesma morte severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença é que a morte severina
ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima,
a de tentar despertar terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar alguns roçados da cinza.
Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir a história de minha vida,
passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.

 

Esta entrada foi publicada em Psicologia. Adicione o link permanente aos seus favoritos.