As “Logias” da “Psiquê”

  1. Introdução

Para se falar de psicologia é necessário fazer uma introdução etimológica, antes das referências epistemológicas.

Psique (ou psiquê) é: termo teológico, filosófico e científico que designa a essência ou personificação do princípio de vida considerado como sistema de referência ou base das funções psíquicas, da ação e do comportamento; alma, espírito. (Houaiss, 2001)

Logia é: ciência, arte, tratado, exposição cabal, tratamento sistemático de um tema. (Houaiss, 2001)

Então psicologia pode ser uma série de coisas dependendo das combinações possíveis dos dois conceitos. Há quem relate observações sobre comportamentos e há quem procure um tratamento sistemático sobre a alma. Não há de se dizer, no entanto, o que seja o certo ou o errado, mas de se entender que existe uma infinidade de olhares sobre o tema.

Existem olhares ditos populares, cotidianos, leigos, aqueles resultantes do senso comum, onde a psicologia aparece como o jeito de entender ou de se fazer entender alguém, ou a arte de convencer o outro, ou como a paciência para ouvir opiniões distintas. Por outro lado, existem estudos de psicologia muito próximos dos tratados de neuroanatomia e psiquiatria, outros que beiram a essência da filosofia, ou ainda, se embrenham pela teologia.

Classificar por valores ou dar outra prioridade qualquer também pode ser um risco de particularizar demais a visão do que seja a psicologia. Lembra-me um texto de Foucault (1987) sobre os critérios de classificação, fazendo referência a uma leitura de Borges (José Luis Borges 1899-1986), onde:

Esse texto cita ”uma certa enciclopédia chinesa” onde está escrito que “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com pincel muito fino de pelo de camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe se parecem com moscas”. No deslumbramento dessa taxionomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso. (p.5)

Desta feita, qualquer classificação ou destaque conceitual do que seja a psicologia, é somente uma visão particular sobre o tema. Não se pode dizer que seja a verdade sobre o assunto em questão.

No dicionário Houaiss (2001), aparece como:

1) ciência que trata dos estados e processos mentais;

2) estudo do comportamento humano ou animal;

3) conjunto dos traços psicológicos característicos de um indivíduo ou de um povo, uma comunidade, uma geração etc.;

4) curso universitário onde se ensinam os principais ramos da psicologia, bem como ciências afins, e que forma o psicólogo;

5) atividade psicológica ou mental característica de uma pessoa ou situação;

6) capacidade inata ou aprendida para lidar com outras pessoas, levando em conta suas características psicológicas; tato, compreensão, jeito;

7) análise ou estudo psicológico de um livro, uma obra de arte, um fato, um fenômeno, uma característica de algo etc.

  1. Breves notas sobre uma longa história

2.1. A mitologia grega

Para se entender a psicologia de hoje, não se pode deixar de considerar a mitologia grega na formação da cultura ocidental. Conforme Brandão (2000:13), o mito se apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Completa o autor que mito e “logos” são duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida e do espírito. E diz ainda:

Assim é que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas as suas criações. E talvez seja este o caráter mais evidente do mito grego: verificamos que ele está presente em todas as atividades do espírito (p.14).

Mito é diferente da lenda, pois lenda tem um cunho edificante e provém de algum fato histórico, seja um herói, seja um santo ou um personagem popular, embora modificados por interesses nem sempre explícitos.

Mito é diferente da fábula, que é uma pequena narrativa proveniente puramente do imaginário com interesse educativo teórico ou moral, geralmente dando vozes e ações humanas aos animais.

Mito é diferente da alegoria, quando se diz uma coisa para se entender outra que não se consegue dizer com palavras próprias. Mito é diferente da parábola, que é um mito elaborado de forma intencional para explicar algo, como se apresenta na didática do cristianismo. O mito em si não se diz bom ou mau, nem certo ou errado, embora fossem muitas as tentativas de dicotomização e até politização dos mitos mesmo entre os primeiros filósofos gregos que já se referiam aos mitos.

Resta ainda o evemerismo a interpretação filosófica, segundo a qual os deuses são personagens humanos, extraídos de relatos tradicionais e acontecimentos históricos, divinizados pelos próprios homens. (Evêmero de Messina, séc. IV e III a.C.)

Sobre o mito, Brandão (2000:37), que:

Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos veem no mito tão-somente os significantes, isto é a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.

Para nós, neste momento, basta perceber que há uma intenção bem antiga de se explicar o funcionamento psíquico do homem e a constituição social da humanidade.

A visão grega do homem submetido ao capricho dos deuses, entre a noção de realidade empírica e a metafísica que explicasse a existência, reflete uma visão pessimista da existência, tal como o mito de Sísifo. O rei de Corinto, tendo conseguido livrar-se da morte, foi condenado a rolar uma pedra morro acima. Chegando ao topo essa pedra rolava morro abaixo e assim a tarefa se repetiria diariamente e para sempre. Em resumo, se não morreu vai ter que trabalhar
(sofrer) sempre.

2.2. A filosofia grega

Pitágoras (séc. VI a.C.) – números – metempsicose Pitágoras e seus discípulos pregavam uma vida voltada para o bem onde o homem deveria se purificar dos desejos maléficos da carne. Destacavam um dualismo entre o bem e mal, o espírito e a matéria, a harmonia e a discordância. O bem e o mal eram possibilidades tais como par e impar, algo abstrato. Acreditavam na imortalidade do espírito que deveria reencarnar após a morte, tanto em novos homens, quanto em animal e até mesmo em vegetais.

Parmênides – (séc. V a.C) entendia que nada muda, tudo é. O movimento, a mudança e a diversidade, tudo pura ilusão dos nossos sentidos. Dizia que eram mudanças superficiais em torno de nós, mas que o essencial não muda, mas não conseguimos entender essa totalidade a partir do raciocínio. Heráclito, pelo contrário, dizia que tudo muda, nada é mais a mesma coisa a um novo momento. Não é o mesmo rio que passa por baixo da ponte. As coisas que vemos e ouvimos é o que há nesse momento, nada mais.

A importância de Heráclito e Parmênides é tal, que o pensamento posterior representa uma superação e uma síntese dessas duas filosofias, do ser e do vir-a-ser. O reconhecimento da realidade do vir-a-ser (Heráclito), bem como da realidade do imutável (Parmênides), fixa uma conquista preciosa e definitiva do pensamento grego. (Padovani e Castagnola, 1990:102)

Demócrito ( séc. V e IV a.C.) – o átomo, a menor partícula possível – aquilo que é indivisível. Tenta Demócrito explicar a gnosiologia por esta doutrina materialista-mecanicista. O conhecimento sensível é explicado pelo contato imediato – a saber, mediante algum meio – ou imediato – isto é, sem meio algum – entre os objetos e os órgãos sensórios. Demócrito reduz, naturalmente, também o conhecimento intelectual a uma modificação material da alma. (Padovani e Castagnola, 1990:104)

Os Sofistas – Céticos, gnosiologia relativista, desenvolvimento da habilidade no discurso, moral hedonista, o direito e a força (natural), ateísmo prático. De início eram conhecidos como os sábios, ou os que sabem das coisas, mas depois o termo foi transformado em pejorativo pelas críticas de Platão, aos artifícios de linguagem e à superficialidade dos seus pensamentos. Protágoras, o maior dos sofistas, dizia: “o homem é a medida de todas as coisas – as coisas são como lhe parecem; não porém como parecem ao homem em geral, mas ao indivíduo em particular”.

Inicia-se uma revolução intelectual, o homem vira centro das atenções. Começa-se a pensar no homem em si, independentemente ao caráter teológico ou mitológico, mas ao homem que nasce e vive ali naquele grupo. O centro das atenções deixou de ser o universo físico, mas as cogitações do homem, os pensamentos e os sentimentos. A verdade deixou de ser universal para ser a verdade de cada um. O mundo deixou de ser único para todos, mas há o mundo de cada um. Com os sofistas surge o individualismo, a democracia, a condenação da escravidão e do racismo. Defende-se a liberdade individual, os direitos do homem comum. Surge o humanismo. Cícero disse que os sofistas “desceram a filosofia dos céus para as moradas dos homens”. Perceberam a loucura da guerra e ridicularizaram o tolo chauvinismo de muitos atenienses. Seu mais importante trabalho talvez tenha sido o alargamento da filosofia para incluir não somente a física e a metafísica, mas ainda a ética, a política e a epistemologia, isto é, a ciência do conhecimento. (Burns, 1970:172)

Sendo a percepção dos sentidos a fonte exclusiva do conhecimento, só pode haver verdades particulares, válidas para um certo tempo e um certo lugar. Do mesmo modo, a moral varia de povo para povo. Em certos casos, os espartanos animam o adultério tanto por parte das esposas quanto dos maridos; os atenienses segregam suas mulheres e até lhes recusam uma vida social normal. Qual desses padrões é o certo? (Burns, 1070:172)

Sócrates (470 a 399 a.C.), filho de uma parteira, se dizia parteiro de ideias. Assim como a parteira ajudava às mulheres a “dar a luz”, Sócrates dizia estar apenas ajudar a “trazer à luz” as ideias que já estavam na cabeça das pessoas. Suas atitudes críticas, irônicas, e a educação que preconizava, acabaram levando-o a um julgamento que o condenou à morte. Sócrates nada escreveu, foi relatado por Xenofonte e Platão, seus discípulos. A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema “conhece-te a ti mesmo” – isto é, torna-te consciente de tua ignorância – como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. (Padovani e Castagnola, 1990:110)

Para Sócrates a sabedoria está no conhecimento das próprias idéias, é necessário “trazer para a luz”, “dar à luz” no sentido em que a parteira faz o parto. Bastaria segundo ele, um método para se conseguir isso, que chamou de “maiêutica”, o ato de partejar mesmo. Esse método consistia, basicamente, perguntar e perguntar de novo conforme a nova resposta. Ao mestre não cabe ensinar, mas perguntar. Sócrates argumentava que deste modo o homem podia descobrir princípios permanentes de direito e de justiça, independentes dos desejos egoístas dos seres humanos. Acreditava, além disso, que o descobrimento de tais princípios racionais de conduta seria um guia infalível para a vida virtuosa, pois negava que aquele que verdadeiramente conhecesse o bem pudesse jamais preferir o mal. (Burns, 1970:173)

Platão (428 a 348 a.C.), diz tanto de Sócrates que é difícil saber exatamente o quanto de seus escritos se referem exatamente ao seu mestre ou a ele mesmo. Fundou sua escola no Jardim de Academo, donde surge a ideia de Academia. Para Platão a alma é superior à matéria; todo ser tem alma; a alma humana é espiritual; não desempenha as funções vegetativa e sensitiva; sua união com o corpo é extrínseca e violenta; a morte é uma libertação. Platão vai dizer que o
corpo é um instrumento grosseiro para alma, dificultando a sua realização. Diz que as ideias dos homens é um arremedo das ideias verdadeiras que o homem não consegue reconhecer exatamente (vide mito da Caverna). Dizia que a alma é eterna, existindo antes do nascimento e depois da morte. Enquanto Sócrates se ocupava do autoconhecimento, Platão já se ocupa da vida do homem em sociedade e escreve “República”, um plano utópico de harmonia entre as classes trabalhadoras, soldados e aristocracia, sob a direção dos sábios, os mais velhos.

Aristóteles (384 a 322 a.C.), foi o mestre de Alexandre Magno, da Macedônia. Diferente de Platão, dá tanta importância à matéria quanto ao espírito, embora admitisse uma força organizadora do universo. Deus seria uma causa primeira. O homem seria um animal social e político por natureza. Recomendava um estado equilibrado com o predomínio da classe média, a politéia, algo entre a democracia e a aristocracia. Aceitava a propriedade, mas não muito grande, e recomendava a ajuda para o estabelecimento de pequenos proprietários rurais.

Epicuro (341 a 270 a.C.) propõe tornar o homem feliz, dar-lhe um estado purificado de toda angústia, de toda perturbação: a ataraxia. Pregava a frugalidade e ausência de exageros de qualquer natureza. Na ética de Epicuro, há três instâncias de vida para o homem: a polis, os jardins de sua casa e o interior de sua casa. Não há como procurar a felicidade na polis, pois lá é um lugar de todos os homens e não do indivíduo. As regras são para todos e devem ser obedecidas, queiram ou não. Nos jardins da sua casa o homem é mais livre, está entre amigos, mas, mesmo assim, não dá para ser totalmente feliz, pois sempre há confronto com o outro, mesmo que seja um irmão. O único lugar para ser feliz é dentro de sua própria casa, isto é, na sua intimidade e na sua solidão. Assim a moral de Epicuro consistirá antes de tudo numa fuga de todas as ocasiões de dor, de todos os riscos, de todas as aventuras; Epicuro condena os prazeres artificiais (os dos luxos, das vaidades) e só considera entre os prazeres naturais os que são absolutamente necessários. (Vergez: 70)

  1. Glossário

Ataraxia: para os pensadores cépticos, epicuristas e estóicos, completa ausência de perturbações ou inquietações da mente, concretizando o ideal tão caro à filosofia helênica da tranquila e serena felicidade obtida através do domínio ou da extinção de paixões, desejos e inclinações sensórias. Qualquer sensação, fugaz ou permanente, de serenidade, tranquilidade, calma. (Houaiss, 2001)

Epistemologia: estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história; teoria da ciência. (Houaiss, 2001)

Etimologia: estudo da origem e da evolução das palavras. (Houaiss, 2001)

Gnosiologia: teoria geral do conhecimento humano, voltada para uma reflexão em torno da origem, natureza e limites do ato cognitivo, frequentemente apontando suas distorções e condicionamentos subjetivos, em um ponto de vista tendente ao idealismo, ou sua precisão e veracidade objetivas, em uma perspectiva realista; gnoseologia, teoria do conhecimento. (Houaiss, 2001)

Hedonismo: cada uma das doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e fundamento da vida moral, embora se afastem no momento de explicitar o conteúdo e as características da plena fruição, assim como os meios para obtê-la. (Houaiss, 2001)

Metempsicose: movimento cíclico por meio do qual um mesmo espírito, após a morte do antigo corpo em que habitava, retoma à existência material, animando sucessivamente a estrutura física de vegetais, animais ou seres humanos; reencarnação. (Houaiss, 2001)

  1. Referências Bibliográficas

Brandão, Junito de Souza. Mitologia Grega, 5ª. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. vol.I. 406p.

Burns, Edwuard McNall. História da Civilização Ocidental. 2ª. ed. 9ª. reimpressão. Porto Alegre: Editora Globo. 1970 Vol I 581 p.

Foucault, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. 407 p.

Houaiss, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro – Editora Objetiva, 2001 [CD]

Padovani, Umberto e Castagnola, Luis. História da Filosofia, 15ª. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1990. 588 p.

Vergez, André e Huisman Denis. História dos filósofos ilustrada pelos textos. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988. 445 p.

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