A formação da identidade médica

E descobri com isso que nós todos estamos muito mal preparados para a vida humana, tanto pelo patrimônio genético, quanto pela educação que recebemos mesmo nos mais sofisticados cursos das melhores universidades. E que talvez esse seja o mais premente problema a ser enfrentado pelos educadores: preparar o ser humano para viver a vida e não apenas ganhá-la e garantir a sobrevivência com uma boa profissão bem remunerada. Abram Ekstermam

Quando de aborda “a formação de identidade médica” é necessário traçar alguns parâmetros, pois a seara é muito vasta – pode-se mais confundir do que elucidar a questão. A primeira questão que pretendo colocar aqui é a limitação do conceito. Identidade é a qualidade de ser idêntico, ser muito parecido, ser similar, análogo, equivalente, semelhante, ter as mesmas características, sofrer os mesmos atributos. Identidade não é uma qualidade individual, mas a ocorrência de semelhanças coletivas.

Identidade médica é o que se procura de semelhante entre os diferentes. Cada pessoa saudável é uma singularidade, uma existência inédita, uma vida própria. O que se espera de idêntico na atividade médica são os procedimentos técnicos, resultados das práticas dos saberes científicos. Não se espera encontrar duas pessoas iguais, nem tenta-las fazer iguais.

Identidade médica se procura nos procedimentos técnicos, nos trabalhos científicos, nas pesquisas acadêmicas, onde há identidade de propósitos e metodologias. Não se pode falar de identidade médica com a ideia de formatação técnica de pessoas que são singulares, mas de formação de um corpo funcional com uma diversidade de participantes.

Ao se buscar o que há de comum na atividade médica (a sua identidade), não se pode se esquecer de destacar a singularidade da pessoa que, eventualmente, procurou funcionar como médico. O confronto da singularidade com a formatação funcional é um dos fatores de estresse do estudante de medicina e até do profissional “formado”.

A identidade médica pode ser idealizada, ou verificada na prática funcional.

Na idealização se buscam metáforas até na origem grega, algo de origem divina. Da idealização moderna da medicina, destacam-se ainda os fatores altruístas, tais como a dedicação ao ministério de minorar as dores e de curar os doentes; fatores sociais, tais como a atividade liberal, o enriquecimento e o desenvolvimento de poder; fatores psicológicos tais como status, a honra e o prestígio  (BOTEGA 2012, 37).  Da verificação da prática funcional, destacam-se múltiplos empregos, jornadas extensas (60 horas semanais); submissão funcional ao estado ou ao empresariado, ambientes insalubres, muito estresse, alguns vícios e sofrimentos.

Na disputa coorporativa, no meio econômico, o poder é exercido pela manutenção da raridade. Evita-se o exército de reserva denunciado por Carl Marx, proíbem a formação de novas escolas que só são economicamente viáveis enquanto forem poucas. É uma questão de mercado. Há muito interesse na exploração de novas escolas de medicina enquanto há procura e seleção. Só os melhores alunos conseguem vagas nas escolas federais e estaduais, poucos podem pagar as escolas particulares.

A formação é cara e deficiente. Uma pesquisa feita pela direção da escola de medicina da USP (Adib Jatene), perguntava a cada departamento o currículo e o tempo necessário para a formação de um médico. Resultado: dezoito anos de curso. O currículo do curso de seis anos é resultado de um embate político, pois não existe uma justificativa técnica suficientemente esclarecedora para o melhor currículo, a melhor divisão disciplinar, a melhor metodologia de ensino e aprendizagem.  O departamento que não fizer o jogo do poder, pode perder espaços, horas aula, professores.

Não é sem razão a participação política de muitos médicos, tanto no legislativo quanto no executivo. Muito se aprende nas categorias de base, desce a política estudantil.

O maior crime contra a saúde do estudante de medicina é pregar uma “identidade médica” idealizada quando o aluno está vivenciando contradições homéricas no seu dia a dia no estágio de atendimento nas periferias.

Uma professora de saúde pública, levava seus alunos para acampamentos de sem-terra, de boias-frias, de periferia. Uma aluna sua confidenciou que se a mãe dela soubesse onde ela estava fazendo seus estudos, tirar-lhe-ia da escola.

O médico atual pode curar um sem-número de patologias, ele participa de verdadeiros “milagres” da ciência, mas se, de um lado, o corpo biológico está sendo desvendado e “reparado” cada vez melhor, de outro, alguns médicos percebem que o sofrimento do paciente escapa de suas possibilidades terapêuticas. Na formação médica, as conexões de sentido que são feitas a respeito das doenças (e do sofrimento) são colocadas sempre fora, na ciência, e não no sujeito. O profissional acaba encontrando muita dificuldade para lidar com qualquer sofrimento que não esteja diretamente relacionado a uma alteração anatômica ou explicação fisiopatológica oriundas de um mundo de constante visibilidade, circunscrito pelo corpo do paciente. (BOTEGA 2012, 40)

Tomemos o caso do RG ou carteira de identidade. De um lado é um documento que procura especificar a ocorrência de singularidades (assinatura, foto e impressão digital); no verso trata de ordenar as identidades: nome, filiação, naturalidade e data de nascimento.

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