O ensino da comunicação na graduação em medicina

o ensino da comunicação na graduação em medicina

Pedro Santo Rossi e Nildo Alves Batista

Resumo

Analisa-se o processo ensino/aprendizagem da comunicação na relação médico-paciente durante a graduação médica, discutindo concepções de alunos e de coordenadores sobre esse processo e identificando como e quando o currículo o contempla. Foram entrevistados 12 egressos e nove coordenadores de curso. Apreendeu-se uma grande diversidade de concepções sobre comunicação, afirmando-se, principalmente, uma tendência em considerá-la uma habilidade instrumental para conseguir informações e se fazer entender no procedimento médico. O aprendizado da comunicação acontece, prioritariamente, de maneira implícita ao processo de formação, vinculado a algumas disciplinas, como a Semiologia e a Psicologia Médica, ou perpassando o currículo nos diferentes momentos de ensino/aprendizagem. A observação de atitudes e comportamentos no cotidiano do ensino, seja de professores ou de outros médicos em atividade, notadamente no internato, é a principal responsável pela aprendizagem desta habilidade pelos alunos. Os resultados encontrados nesta pesquisa, dada a relevância da comunicação no exercício da prática médica, apontam para a necessidade de um redimensionamento do olhar para essa temática nos projetos pedagógicos de formação de futuros médicos.

educação médica; comunicação; relações médico-paciente; aprendizagem

The purpose of this work is to analyze the process of teaching/learning communication within the doctor-patient relationship during the undergraduate medical course, discussing the ideas of students and of coordinators regarding this process, and identifying how and when the curriculum takes this issue into account. Twelve graduates and nine course coordinators were interviewed. We learned that there is a great diversity of ideas on communication, especially a tendency to think of it as an instrumental skill for obtaining information and making oneself understood within medical procedures. The learning of communication takes place primarily in an implicit way within the education of physicians, being connected with certain disciplines, such as Semiology and Medical Psychology, or being imbued in the curriculum during the different moments of teaching and learning. The observation of attitudes and behaviors in the daily practice of teaching, whether by professors or other physicians in practice, notably during internship, is the main factor responsible for student learning of this skill. The results found in this research, given the relevance of communication in the exercise of medical practice, indicate that it is necessary to reassess this theme in connection with the pedagogical practices used to train future physicians.

medical education; communication; physician-patient relations; learning

El objetivo de este trabajo es analizar el proceso enseñanza/aprendizaje de la comunicación en la relación médico-paciente durante la graduación médica, discutiendo concepciones de alumnos y de coordinadores sobre ese proceso e identificando cómo y cuándo el currículo lo contempla. Fueron entrevistados doce egresados y nueve coordinadores de cursos. Aparece una gran diversidad de concepciones sobre comunicación, mostrando, principalmente, una tendencia a considerarla una habilidad instrumental para conseguir información y hacerse entender en el procedimiento médico. El aprendizaje de la comunicación ocurre, prioritariamente, de manera implícita al proceso de formación, vinculado a algunas disciplinas como la Semiología y la Sicología Médica o durante el desarrollo del currículo en los diferentes momentos de enseñanza/aprendizaje. La observación de modelos, tanto de profesores como de otros médicos en actividad, notadamente en el internado, son los principales responsables por ese proceso. Los resultados encontrados en esta investigación, dada la relevancia de la comunicación en el ejercicio de la práctica médica, indican la necesidad de redimensionamiento de perspectiva sobre esta temática en los proyectos pedagógicos de formación de futuros médicos.

educación médica; comunicación; relaciones médico-paciente; aprendizaje

O ensino da comunicação na graduação em medicina – uma abordagem*

Pedro Santo RossiI,1; Nildo Alves BatistaII

IDepartamento Psiquiátrico II, Secretaria de Saúde, Estado de São Paulo, SP.

IICentro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo. Cedess/Unifesp, SP.

RESUMO

Analisa-se o processo ensino/aprendizagem da comunicação na relação médico-paciente durante a graduação médica, discutindo concepções de alunos e de coordenadores sobre esse processo e identificando como e quando o currículo o contempla. Foram entrevistados 12 egressos e nove coordenadores de curso. Apreendeu-se uma grande diversidade de concepções sobre comunicação, afirmando-se, principalmente, uma tendência em considerá-la uma habilidade instrumental para conseguir informações e se fazer entender no procedimento médico. O aprendizado da comunicação acontece, prioritariamente, de maneira implícita ao processo de formação, vinculado a algumas disciplinas, como a Semiologia e a Psicologia Médica, ou perpassando o currículo nos diferentes momentos de ensino/aprendizagem. A observação de atitudes e comportamentos no cotidiano do ensino, seja de professores ou de outros médicos em atividade, notadamente no internato, é a principal responsável pela aprendizagem desta habilidade pelos alunos. Os resultados encontrados nesta pesquisa, dada a relevância da comunicação no exercício da prática médica, apontam para a necessidade de um redimensionamento do olhar para essa temática nos projetos pedagógicos de formação de futuros médicos.

Palavras-chave: educação médica. comunicação. relações médico-paciente. aprendizagem.

Introdução

As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (Brasil, 2001) apontam para a necessidade de formação de um médico generalista, humanista, crítico e reflexivo, capacitado para atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência. Dentre as habilidades específicas, destacam a necessidade de o aluno aprender a comunicar-se adequadamente com os colegas de trabalho, os pacientes e seus familiares, informando-os e educando-os por meio de técnicas apropriadas. Embora exista ainda, especialmente no Brasil, uma carência de literatura específica sobre ensino/aprendizagem de “comunicação” nos cursos de graduação em medicina, já aparecem muitos trabalhos sobre o tema na literatura internacional.

Dubé (2000) afirma que a efetiva comunicação, relevante para os serviços de prevenção e para a prática diária, está na base das habilidades do médico, não somente para o levantamento da história básica e demais dados, mas para a construção da relação com o paciente, na facilitação, negociação e parceria. Conforme o autor, as competências fundamentais para a comunicação médico-paciente são, agora, rotineira e sistematicamente ensinadas em muitas escolas médicas dos Estados Unidos.

Hulsman (1999), revendo literatura sobre a relação médico-paciente na Holanda, salienta a importância da comunicação na atividade profissional do médico; apesar disso, afirma que as escolas não chegam a ocupar mais que 5% da carga horária do currículo no desenvolvimento dessa habilidade, focalizando prioritariamente os aspectos tecnológicos e biomédicos da prática profissional.

Na Faculdade de Medicina do Imperial College of Science, Technology and Medicine, em Londres, é utilizado um sistema de treinamento para desenvolvimento de habilidades de comunicação em que atores contratados e/ou alunos representam pacientes. Tais eventos, segundo os autores, proporcionam um excelente treinamento para os alunos identificarem e refletirem sobre as especificidades da relação com os pacientes (Nestel, 2002).

Em 1992 foi realizada uma oficina de trabalho, no Canadá, abordando a temática do ensino e avaliação das habilidades de comunicação na relação médico-paciente nas escolas médicas canadenses (CMAJ, 1992). Quatro anos depois, foi feita uma pesquisa avaliando os resultados do evento na transformação do ensino de comunicação em 15 das 16 escolas participantes. Todas reportaram grandes mudanças no período, bem como projetos de mais mudanças para os anos futuros. No entanto, demonstraram que existiam dificuldades para implantação de mudanças curriculares. As barreiras mais freqüentemente mencionadas foram: falta de professores devidamente habilitados para o ensino da comunicação, discussão da grade curricular e ausência de novos espaços específicos para esse ensino.

Na Conferência Internacional de Ensino de Comunicação em Medicina, realizada em Oxford, em 1996, chegou-se a um consenso com a recomendação de oito itens básicos necessários para a formação (graduação) e o desenvolvimento (educação continuada) do profissional médico: 1 o ensino e avaliação deverão se basear numa visão ampla de Medicina; 2 o ensino de comunicação e o de clínica deverão ser consistentes e complementares; 3 o ensino deverá orientar e ajudar o estudante, no esforço da comunicação centrada no paciente; 4 o ensino e a avaliação da comunicação deverão proporcionar o desenvolvimento pessoal e profissional; 5 o currículo deve apresentar uma estrutura planejada e coerente para o ensino de habilidades em comunicação; 6 as habilidades estudadas deverão ser avaliadas diretamente na prática; 7 os programas de ensino e avaliação de comunicação deverão ser reavaliados constantemente; e 8 o desenvolvimento da matéria deverá ser sustentado por pesquisas adequadas (Makoul & Schofield, 1999).

O termo “comunicação” tem muitas acepções, desde uma troca de olhares até a rede mundial de satélites (Houaiss, 2001; Santaella, 2001; Martino, 2001). Santaella (2001, p.17) destaca sua polissemia relacionando recortes de diversos autores: ‘Recepção e processamento de sinais detectáveis física, química e biologicamente por um ser vivente’ (Mayer-Eppler, 1959); ‘A troca de informação entre sistemas dinâmicos capazes de receber, estocar ou transformar informação’ (Klaus, 1969); ‘A interação social através da mensagem’ (Fiske, 1990); ‘Uma transição gradual que vai dos modos de interação protocomunicacional mais rudimentares até os mais complexos’ (Nöth, 1990); ‘A relação dos espíritos humanos, ou melhor, dos cérebros humanos’ (Baylon & Mignot, 1999).

Braga & Calazans (2001) afirmam que a comunicação é conatural ao ser humano e que, portanto, não há comunidade ou sociedade sem comunicação entre os homens: eles interagem, convivem, agem em comum, vivem em comum, comunicam-se sempre. Referindo-se à “sociedade mediatizada”, os autores comentam que: “Ao se dotar de mediações tecnológicas para desenvolver as interações sociais, a sociedade não apenas acrescenta instrumentos que aceleram e diversificam sua comunicação, mas acaba por modificar seus próprios processos.” (2001, p.30)

De acordo com Fiske (1990), podemos identificar dois eixos principais no processo comunicacional: o primeiro considera a comunicação como uma linha de transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor, onde A informa B; para o segundo a comunicação é uma interação, uma troca de signos, significados, significantes, onde A e B se relacionam.

Este trabalho teve como objetivo analisar o processo ensino/aprendizagem da comunicação na relação médico-paciente durante o curso de graduação em medicina, na visão de egressos e coordenadores de cursos.

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida com dois grupos de sujeitos: profissionais médicos recém-formados, aqui denominados egressos (E), e professores coordenadores de ensino na graduação médica, aqui denominados coordenadores (C). O grupo de egressos constituía uma turma de iniciantes numa residência em Clínica Médica de um hospital geral não vinculado à universidade, com concurso de âmbito nacional. Os coordenadores foram entrevistados por adesão à solicitação feita a todos os presentes a um Congresso de Ensino Médico, com participação de diferentes estados brasileiros. Não houve uma escolha direcionada a nenhuma instituição ou estado em particular, mas procurou-se apreender visões de egressos e coordenadores de diferentes instituições. Neste sentido, a escolha de locais para a coleta dos dados deu-se por conveniência, tendo em vista a abrangência nacional dos mesmos. Não houve a intenção de comparar as respostas como representativas de categorias diferentes.

Optou-se pela pesquisa qualitativa, com olhar fenomenológico, entendendo o seu potencial na compreensão do fenômeno particular (Amatuzzi, 2003; Bruns, 2003; Holanda, 2003; Forguieri, 1997). Sob esse olhar, as respostas fornecidas nas entrevistas não foram simples depoimentos, mas novas vivências sobre o passado com os filtros de agora, emergindo relatos do “vivido“.

As entrevistas com os egressos foram realizadas na primeira semana da Residência, sendo entrevistados 12 residentes: oito mulheres, quatro homens; idade média de 25 anos, oriundos dos estados de SP (quatro), RJ (três), ES (um), BA (dois), SE (um) e AL (um). Foram entrevistados, também, nove coordenadores de cursos de medicina, representando cinco cursos federais, três estaduais e um particular, de diferentes estados do país: RS (um); PR (um); SP (três); MG (dois); PE (um); e RR (um). As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas à revisão dos entrevistados.

Para a análise dos dados, optamos pela orientação de Amatuzzi (2003), em quatro passos: no primeiro, sintetizar a entrevista e devolvê-la para aprovação do colaborador; no segundo, sistematizar as sínteses dos diversos depoimentos; no terceiro, dialogar com a literatura e discutir os resultados com outros pesquisadores; e, finalmente, no quarto, escrever o relato da pesquisa, que pode ser o início de um diálogo com a comunidade científica.

Os núcleos orientadores da análise desta pesquisa, procurando identificar parâmetros para a compreensão do ensino da comunicação na graduação em Medicina, foram o processo de comunicação interpessoal na prática do médico e as dimensões do processo de ensino/aprendizagem da comunicação na graduação médica.

Na compreensão dos autores, o processo de comunicação se realiza na relação eficiente entre o médico e o paciente, numa compreensão empática conforme descrita por Rogers (1991). Deste referencial, a comunicação interpessoal se estabelece como habilidade pessoal, resultado de atitudes suficientes e necessárias para uma relação terapêutica. As dimensões analisadas do processo ensino/aprendizagem da comunicação na graduação médica priorizam as concepções de alunos e de coordenadores sobre tal processo, identificando como e quando o currículo de formação o contempla.

Das análises das entrevistas, com base nos núcleos orientadores, emergiram temáticas que foram agrupadas, posteriormente, nas categorias empíricas desta investigação. Essas categorias são apresentadas nos dois tópicos a seguir: a concepção de comunicação dos participantes e “como” e “quando” acontece o aprendizado dessa habilidade na graduação em Medicina.

A concepção de comunicação de egressos e coordenadores

Propor-se a apreender concepções de egressos e coordenadores de cursos médicos remonta a uma reflexão sobre os termos concepção e conceito. Parte-se do pressuposto de que o termo “concepção” permite maior abertura para a diversidade de pensamentos do que seu correlato “conceito”. Conceber denota a forma particular de perceber, apreender ou compreender algo. Concepção implica as condições necessárias e suficientes para o nascimento biológico, assim como pode representar o nascimento de uma ideia. A concepção é uma construção individual da mente, a formação de uma consciência a respeito de algo com base na sensação e experiência anterior do sujeito. A pesquisa buscou a concepção do médico sobre a comunicação, o enfoque particular, o entendimento próprio sobre o que seja esta habilidade na relação com o paciente.

Para alguns coordenadores entrevistados, a noção de comunicação aparece de forma muito ampla: “a comunicação é um todo na profissão médica, que não é só palavra, não é só escrita, é atitude como um todo” (C05); para outros, revela-se um simples instrumento para conseguir dados suficientes e necessários para o diagnóstico: “Como você consegue uma informação dependendo da classe social, das condições de vida daquela pessoa” (C02). Para os egressos, predomina o mais popular dos conceitos: “Comunicar é se fazer entender pelo paciente” (E09).

A concepção de comunicação como um instrumento de investigação na relação médico-paciente foi a mais frequentemente encontrada nesta pesquisa. Nesse sentido, o levantamento de dados objetivos para análise e diagnóstico é tomado como atividade precípua do processo de comunicação na consulta médica. Comunicar, nesse enfoque, aparece como uma “atividade-meio”, um instrumento, um procedimento, algo necessário e suficiente para se conseguir informações. O “procedimento” comunicação na relação médico-paciente aparece como instrumento de realização do ato médico. “É você conseguir fazer com que o paciente fale o que está realmente incomodando” (E12).

Para se conseguir as informações, dar e receber dados específicos, entram em pauta as discussões sobre a fala, a linguagem médica, a linguagem popular, e a sua adequação no ato comunicativo entre o médico e o paciente: “Como é explicar ao doente alguma coisa sobre a sua patologia, ao dar as informações sobre a doença, ao dar a prescrição, a clareza em fazer isso” (C09).

A adequação da linguagem do médico é mencionada como atividade necessária, tanto para se obter as informações para o diagnóstico, quanto para explanação do prognóstico e da prescrição. “Identificar qual é o tipo de conversa que você pode ter com o paciente, qual é o nível de linguagem, até o limite que você pode explicar as coisas” (E03).

Saber identificar o nível de linguagem do paciente e se fazer entender” resume a concepção do que seja comunicação para uma parte da população entrevistada. Explicar, transmitir, passar, expressar, esclarecer e fazer-se entender são verbos de ação que denunciam o caráter impositivo do papel de “emissor da mensagem” que o médico assume nessa relação de comunicação.

Entretanto, uma parcela dos entrevistados também relatou a atenção à fala e à participação dos pacientes, lembrando da conversa (“considerar o verso”, “ver o verso”, “olhar o outro lado”), atendendo à demanda de ouvir e entender o que o outro tem a dizer: “Acho que comunicação é enfocar mais isso, tanto a parte técnica, saber cuidar da doença do paciente, mas saber conversar, ter o paciente como um amigo, não como um objeto de trabalho, como simplesmente um ganha-pão” (E12).

Também se enfatizou que a comunicação não se dá apenas pela fala, pela informação verbal, mas também por meio da postura, da atitude pessoal do profissional, o que impõe uma preocupação com a expressão, mesmo que na forma linear de comunicação: “… a forma do corpo, o jeito de se colocar, tem uma linguagem, tem uma expressão para a pessoa que está do lado, no caso o paciente“. (C01)

Se, de um lado, a maioria das concepções remete à perspectiva da comunicação unidirecional, do médico para o paciente, de outro lado, esboça-se um olhar para a comunicação como relação interpessoal, com a participação ativa dos dois elementos envolvidos na produção e troca de significados. Nesse sentido, de um respeito pelo entendimento do outro, encontrou-se uma menção à relação empática, pressuposto teórico básico da relação terapêutica na abordagem humanista:

Comunicação com o paciente é uma empatia; quando você se coloca no lugar do paciente, aquele é um problema que poderia ser seu, e como gostaria de ser atendido, de ser recebido, se você escolhe isso, você vai tratar o outro melhor, vai estabelecer um bom vínculo (…). A partir do momento que você cria uma certa empatia com o paciente, você consegue estabelecer um vínculo melhor, você não se coloca assim superior a ele. (E11)

Finalmente, fossem as concepções amplas ou restritas, lineares ou circulares, semióticas ou não, a pesquisa deparou-se sempre com um sentido de relevância do processo de comunicação no exercício da Medicina: “…comunicação faz parte do ato médico, do atendimento médico, se não se comunicar ou não entender a comunicação dele, não se faz o diagnóstico” (C02).

O ensino da comunicação na graduação em Medicina

“O objetivo de revelar a natureza da aprendizagem através da descrição da experiência do aprender é fundamental para o delineamento da pesquisa e para a própria obtenção das descrições.” (Martins & Bicudo, 1989, p.34)

Na leitura das entrevistas com egressos e coordenadores de cursos de graduação em medicina, pudemos destacar a diversidade de olhares sobre o ensino/aprendizagem de comunicação na formação profissional. Embora todos os egressos tenham relatado alguma aprendizagem de comunicação em seus cursos de graduação, geralmente remetendo a alguma disciplina, nem todos os coordenadores mencionaram a presença explícita dessa temática. Em algumas escolas, a comunicação não consta do programa pedagógico do curso, não havendo referências que possam identificar o propósito curricular no desenvolvimento dessa competência.

Egressos e coordenadores identificam algumas disciplinas como lócus de ensino da comunicação na formação do médico, especialmente, propedêutica ou pemiologia e psicologia médica. Considerando a especificidade curricular, em cursos com metodologia de Aprendizagem Baseada em Problemas, onde não há a grade disciplinar tradicional, o lócus é identificado em módulos como: habilidades profissionais, conteúdos específicos e treinamento em serviço. O ensino/aprendizagem da comunicação é considerado resultante do treinamento de procedimentos e não do estudo de uma habilidade específica.

Os entrevistados sugerem que o aprendizado ocorre no contexto do currículo oculto, especialmente por meio da observação de profissionais em atividade, seja como médicos ou professores. Tanto egressos como coordenadores utilizam o termo “modelo”. Segundo Apple (2003, p.127), o currículo oculto é entendido como “normas e valores que são implícitos, porém efetivamente transmitidos pelas escolas e que habitualmente não são mencionados na apresentação feita pelos professores“. Essas normas e valores estão presentes em todos os momentos de aprendizagem, inclusive naqueles em que não se aponta o objeto de estudo.

O modo como se aprende foi mais explorado pelos entrevistados do que os momentos em que isso acontece – fato justificado, justamente, pela ausência explícita da temática nos programas pedagógicos. Enfatizou-se consideravelmente o aprendizado com base na própria prática: “Mas na realidade a gente aprende mesmo é na prática, com os professores, com os residentes que vão dando suporte para a gente nesse sentido” (E05). A atividade prática junto ao paciente passa a desempenhar papel de destaque no ensino/aprendizagem das habilidades de comunicação.

Santos (2003, p.150), numa reflexão sobre o ensino de Semiologia, diz que “é muito importante conscientizar o aluno de que fazer uma boa anamnese e um bom exame físico se aprende com o paciente“. O aprendizado valendo-se da prática pessoal também é enfatizado por Rogers (1991, p.35):

A experiência é, para mim, a suprema autoridade. A minha própria experiência é a pedra de toque de toda a validade. Nenhuma idéia de qualquer outra pessoa, nem nenhuma das minhas próprias idéias, tem a autoridade que reveste a minha experiência.

Assim, a questão do aprendizado valorizado na prática vai se consolidar no período do internato. O internato é considerado um momento privilegiado para a aprendizagem prática da competência “comunicação”: “Porque o que eu lembro do que eu aprendi na faculdade inteira foi o que eu aprendi no internato com os médicos do meu lado; é o que fica no fim” (E07).

Foi apontada, pelos entrevistados, uma deficiência no processo ensino/aprendizagem de comunicação no âmbito específico do preparo para “dar notícia ruim”, revelar um diagnóstico de certa gravidade: “O meu problema é doença grave, aí eu não vou não, eu acho que eu não fui preparada para isso” (E02).

No entendimento dos coordenadores de curso, a mudança da qualidade das habilidades de comunicação do aluno – e, futuramente, do médico que irá se tornar – passa pela discussão da qualidade de alguns professores, não só no aspecto didático como também no preparo psicológico, diferenciando-se a habilidade profissional médica e o conhecimento técnico-científico da medicina da habilidade necessária à condução do processo educativo.

Considerações finais

O questionamento sobre as concepções de comunicação e sobre o processo ensino/aprendizagem dessa habilidade nas escolas médicas mostra algumas especificidades. Um primeiro aspecto é a sensação de surpresa, especialmente dos coordenadores, diante desse questionamento; deparam-se com algo não pensado antes.

Fazendo uma leitura transversal das falas, depreende-se outra especificidade: a comunicação, para a maioria dos entrevistados, é um procedimento instrumental para execução do ato médico. Para que se chegue a um diagnóstico, é preciso inquirir, de modo a se levantarem dados suficientes para a análise de possibilidades. Saber se comunicar é entender o paciente e se fazer entender por ele. Entra em vigência o esquema clássico de comunicação: emissor – mensagem – receptor, e o foco do processo é a mensagem. Numa via, os dados da anamnese, noutra via, o diagnóstico e a receita. O ato de comunicar é visto, assim, como uma “atividade-meio”. Até as atitudes afetivas de consideração e respeito são vistas como “atividades-meio”, como possibilidades de facilitação do fluxo de informações. “Escutar a fala” e “auscultar o fígado” podem receber a mesma consideração, como procedimentos paralelos do ato médico.

Oliveira (2002, p.3), discutindo o processo comunicacional na relação médico-paciente, comenta que é papel do médico “traduzir o discurso, os sinais e os sintomas do paciente para chegar ao diagnóstico da doença“. No entanto, a comunicação – como habilidade de tornar comum um saber qualquer, num processo de troca de mensagens entre pessoas e no pressuposto de que não se impõe ao outro a informação como se expõe um dado, mas se lhe oferece a oportunidade e se procura facilitar tal aquisição – não é contemplada.

Merleau-Ponty (1999) utiliza o termo “clivagem” para descrever a ação que a pessoa desenvolve ao organizar os dados com base na percepção do objeto e da evocação das referências internas. O processo comunicacional entre o médico e o paciente, como uma interação social entre pessoas, pressupõe relações entre grupos sociais e culturais, sendo influenciado por comportamentos, motivações e estado emocional dos envolvidos (FISKE, 1990).

Rogers (1991, p.43) enfatiza o papel da comunicação na relação terapêutica como em qualquer relação interpessoal: “a relação terapêutica é apenas uma forma de relação interpessoal em geral, e que as mesmas leis regem todas as relações desse tipo“. A interação entre comunicação e prática do médico, tanto em suas relações com o paciente, como com a equipe de trabalho e com a comunidade, em um processo horizontal, caracterizado pelo diálogo, no qual se constroem e (re)constróem significados, assume papel essencial na formação da competência profissional preconizada pelas diretrizes curriculares.

Das concepções dos pesquisados, não se pretendeu saber quanto de “ciência da comunicação” existe no aprendizado da medicina, nem se pretendeu avaliar o acerto ou não dos conceitos que porventura aparecessem, mas almejou-se levantar as análises individuais e entendimentos próprios sobre o assunto.

Na opinião dos entrevistados, o aprendizado da comunicação acontece de maneira subliminar ao processo de formação do médico, não se constituindo em uma proposta explícita na maioria dos cursos vivenciados por eles. Alguns coordenadores e egressos situam o ensino/aprendizagem dessa habilidade no contexto de disciplinas específicas, especialmente semiologia e psicologia médica. Outros o identificam perpassando implicitamente o currículo nos diferentes momentos de formação. A observação de modelos, seja de professores ou outros médicos em atividade, na prática e em contato direto com o paciente, notadamente no internato, é a principal responsável por esse processo.

Partiu-se do pressuposto de que a comunicação é uma habilidade que pode e deve ser conquistada no processo de formação do médico, constituindo uma área de conhecimento específico. Uma proposta mais explícita de ensino de comunicação na graduação em medicina pode fomentar a compreensão de que o processo comunicacional vai além das palavras e tem consequências diretas e profundas na eficácia do ato médico, interpretando-o com o auxílio da linguagem verbal.

O desenvolvimento do ensino da comunicação nos cursos de graduação em medicina – justificado pela importância que emerge das pesquisas sobre relação médico-paciente e acrescido de importantes discussões, especialmente em fóruns internacionais, e das recomendações das novas Diretrizes Curriculares Nacionais – impõe-se como campo de conhecimento a ser contemplado nos projetos pedagógicos de formação de futuros médicos.

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