“Ridendo castigat mores”
Introdução
Enquanto a escola, a igreja e a medicina apresentam um discurso formal sobre a sexualidade, corre pelos bastidores a informalidade subversiva do anedotário popular. Da linguagem patética ao riso surgiu da observação do evento do riso (risinhos e risadas) sempre que se fala de sexo ou sexualidade nas instituições. Não se trata do riso do bom humor, nem da felicidade pelo domínio da atividade prática ou do assunto teórico, muito pelo contrário, o riso de deboche ou de ironia pelo desencontro das teorias com as práticas conhecidas, ou supostas. O enfoque científico, “neutro e impessoal” não passa pelo entendimento tranquilo do sujeito-objeto participante do contexto.
… é impressionante como as piadas sexistas repetem estereótipos que poderiam até, por isso, ser considerados universais. Em todas as piadas sobre temas sexuais que envolvem a questão do tamanho dos órgãos genitais, como anota Raskin, os critérios são os mesmos em qualquer cultura: órgãos genitais masculinos pequenos e órgãos genitais femininos grandes são alvo de comicidade, são fatores provocadores de riso. Esse é um motivo que provavelmente pode contribuir para que as piadas sejam consideradas culturais.
O riso
O riso é fundamental e universal. Embora Freud apresente a fase anal, como primeiro momento de troca e socialização, o riso vem antes mesmo disso; a criança percebe a possibilidade de trocar carinhos ao rir e conseguir o riso da mãe. O riso é um exercício de poder, pois rir é uma manifestação de liberdade. Ganhamos poder quando fazemos alguém rir, exercitamos poder ao rir de alguém; por menos poder que se tenha, se consegue fazer troças de opressores. Toda instituição é uma opressão de poder, daí rir-se das instituições. Os sumérios já praticavam o humor:
” Podemos aturar os nobres e até o rei, mas devemos ter medo mesmo é do coletor de impostos “.
Na literatura grega já se ria do “corno”, Efesto, o ferreiro, que além de feio e manco, ainda era traído pela mulher. Na comédia grega se zombava da aristocracia (Aristófanes).
Em Roma, Cícero recomendava aos jovens advogados a provocarem o riso sobre seus adversários como forma de vencer uma contenda: ” Zombem dos erros de seus companheiros usando a caricatura ou a ironia, demonstre a falsa inocência e ressalte a estupidez do seu adversário para fazer o público rir “.
No século IV a Igreja Católica condenou o riso; todos os atores foram excomungados e o teatro ficou desaparecido por mais de mil anos na Europa. Mas uma coisa a Igreja não conseguiu eliminar: O dia dos Bobos. Nesse dia os festejos começavam com uma missa dos bobos, onde os papéis eram invertidos, todos riam disso, depois continuavam pelas ruas onde os poderosos e os dominados se mascaravam uns dos outros, e todos riam disso.
No século XV, François Rabelais, que por coincidência era Beneditino, Médico e Professor (aguente isso!), cria Gargântua e Pantagruel (1532) numa sátira da vida social da época. Depois Molière, século XVII consegue renovar o teatro profano com a crítica burguesia nascente, aos exploradores e aos que se deixavam explorar, focalizando as afetações dos hábitos sociais, a educação feminina e a estupidez dos médicos. Vê-se que o assunto não é novo. Ao mesmo tempo a Commedia dell’arte Italiana faz sucesso na Europa com as peripécias de Colombina entre Pierrot e Arlequim.
Palhaço surge no circo como uma válvula de escape para tantas tensões despertadas por acrobatas, malabaristas, domadores e mágicos; agradou tanto que acabou o dono do espetáculo. O palhaço representa a liberdade, mesmo que seja para errar. O bobo da corte sempre foi o único súdito com poder suficiente para criticar o rei. As instituições quando insistem na rigidez do correto, acabam por despertar o palhaço que existe dentro de cada um de nós.
Larossa aponta para duas características funcionais do riso na formação do pensamento, uma como forma de isolar, distanciar e relativizar as máscaras retóricas que configuram o uso da linguagem usual e outra se caracteriza pelas autoironias, como afrouxamento dos laços que amarram uma subjetividade demasiadamente solidificada. Rir dos outros e rir de si próprio apresentam situações de diferentes configurações mesmo que sejam coisas muito sérias, aliás só se ri de coisas sérias tal como em “Tempos Modernos” e “O último ditador”de Chaplin.
Utilizando a classificação de Bakhtin, Larossa assume o termo “patético”, para a linguagem direta, a linguagem no sentido próprio, sem distanciamento, sem refração, sem consciência linguística explicita. Emenda que a palavra patética, como toda palavra “séria”, logo se enche de convenções e começa a ser portadora de alguma forma de mentira retórica. Se de um lado, no aspecto funcional mais amplo, a linguagem adquire contornos de solidificação específica em cada área da comunicação, tais como a do pregador no púlpito, o professor na cátedra, o orador na tribuna, o magistrado no tribunal, do outro lado se solidifica também nos encontros e relações mais íntimas assumindo convencionalidades, de uma forma ou de outra, há uma máscara que tipifica e identifica o falante.
O riso aparece quando a fala utiliza a máscara, sabendo que é máscara. É o uso paródico da linguagem onde o falante fala como se fosse um juiz, um padre, um professor. É o faz de conta, alguém que se faz de outro, sabendo que não o é, enquanto a plateia também sabe. não se ri do juiz que fala como juiz, mas do falante que imita o juiz. O diagnóstico médico não tem nenhuma graça, mas se torna engraçado e provoca riso quando é repetido pelo falante que não é o médico. É que, ao repetir a frase médica, se mostra a máscara, ou se desmascara a frase. Imitar a fala do professor, como anedota, é uma das atividades comuns em todos os níveis de escola, e nada melhor que a imagem do pobre vagabundo de fraque e cartola, gravata borboleta e bengala, para denunciar o ridículo das convenções sociais.
O anedotário apresenta atores com estilos diferentes. Um que se apropria dos termos patéticos, ri e conduz ao riso. Outro que se faz “não entender” o termo, faz de bobo, de simplório. Há ainda os que utilizam os termos patéticos em situações contrárias, “desnaturalizando” a linguagem, inverte os sentidos.
O riso destrói a consistência do diálogo patético e os critérios mais ou menos compactos de valoração que o constituem e o amarram. O riso é o momento da autocrítica da palavra no sentido em que introduz o ceticismo sobre a própria palavra e uma fina consciência da contingência e da relatividade da situação comunicativa. Quando aparece o riso, todas as características que constituem a armadura da situação comunicativa se desfazem: fundamentalmente, a unidade entre o falante, sua situação e sua linguagem. Quando irrompe o riso, a própria situação comunicativa perde o seu “patetismo” e se transforma em mascarada, em teatro, em ritual. E, de repente, tudo é percebido debaixo de outra luz.
Na autoironia o sujeito é objeto de si próprio e se subverte no riso. Um movimento de revogação da própria identidade rígida, que se contradiz, que se anula. O sujeito se desestabiliza desnudando-se das máscaras da linguagem patética.
O riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que constitui a consciência enclausurada: a certeza de si. Mas só na perda da certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância irônica da certeza, está a possibilidade do devir. O riso permite que o espírito alce voo sobre si mesmo.
Queremos lançar mão desse olhar sobre o riso para uma análise dos risos no anedotário sobre a repressão da fala sobre a sexualidade, como se pudesse fazer uma sexualidade muda. Fala-se muito sobre sexualidade, ou sobre o que se pensa dela, mas não numa linguagem coloquial e sim nos moldes de uma anedota ou de uma linguagem pomposamente séria. Porquanto a linguagem “séria”, denominada patética, é envolvida em máscaras típicas de cada linguagem seja jurídica, médica, religiosa ou pedagógica, recorremos ao riso enquanto entendido o desmascaramento da linguagem. É nesse enfoque que pretendemos olhar o anedotário sobre a repressão sexual, como a luz que se faz ao desmascarar a linguagem patética seja religiosa, médica ou escolar. Na anedota, em hipérbole ou parábola, ou qualquer outra figura de linguagem, o que importa não é o que é dito, mas o que cada um vai entender, até do que não é dito. O anedotário é utilizado de um lado como subversão ao contido e de outro como complemento ou substituição própria linguagem patética que não dá conta de exprimir a essência ou a divergência da verdade.
Uma piada pode ser definida como um texto que parece falar de uma coisa, mas que fala de outra. Ou melhor, fala das duas, colocando ora uma ora outra em primeiro plano.
O anedotário
Num ímpeto inicial pensei e correlacionar as anedotas recolhidas para este trabalho com a teorização acima exposta. Lembrei, no entanto, que nada pior do que explicar a piada. Então como ficaria o trabalho?
No decorrer dos trabalhos da Comissão de Ética do Senado Federal (maio/2001), tratando da violação do painel eletrônico de votações, o senador Pedro Simon (PMDB-RS), comentando a indiscrição do ex-presidente do senado, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), lembrou uma anedota bastante popular:
Resultado de um naufrágio, dois jovens acabaram sozinhos numa ilha deserta. Passados os dias iniciais de adaptação daquela situação, o jovem passou a olhar a companheira de infortúnio com sensações angustiantes. Arriscou uma proposta, mas foi prontamente negada qualquer possibilidade. O tempo passando, os dois ali sozinhos, o jovem começou a insistir mais e mais na possibilidade de realização de suas vontades, e a resposta era sempre negativa. Continuando as propostas, cada vez com maior insistência, a jovem resolveu ceder, mas com uma condição: Que ele jurasse que, quando saíssem daquela situação, ele não contaria para ninguém. O jovem pensou, pensou e respondeu: não, se não puder contar, eu não quero.
O senador inquiridor comparava o “frisson” do senador inquirido quanto a dizer do seu poder por ter feito algo proibido, tal como sentem as pessoas que sofrem a necessidade de falar do sexo proibido. Vê-se que até nos trabalhos de Comissão de Ética do Senado Federal o anedotário sexual se faz presente e serve para ilustrar situações das mais diversas.
Freud concedeu aos chistes um status de grande dado, pois que os considerou constituídos pelos mesmos traços básicos da linguagem dos sonhos; a mais típica linguagem do inconsciente.
A anedota não diz que seja verdade, nem tem qualquer compromisso com a verdade, mas pode dizer a verdade sobre coisas que não podem ser ditas. não se fala com seriedade, muito menos com serenidade, da atividade sexual, mas o anedotário é rico em situações que envolvem o “não dito”. Usando a terminologia de Larossa tentaremos enveredar pelos risos das patéticas religiosa, médica e professoral.
A patética religiosa
Desde o apóstolo Paulo, nos primórdios da igreja, o sexo é tratado com reservas. Chegou-se a ponto de recomendar a abstinência completa como forma de pureza, daí os ermitões e os conventos e até a castração. Pelo que me consta nenhum diabo apareceu na história para tentar alguém a roubar os tesouros dos ricos e distribuir para os pobres, mas apareceu frequentemente para tentar alguém a roubar a mulher do próximo. Aliás a figura do diabo sempre foi associada ao Fauno, a representação o homem meio animal. O interesse religioso pela alma relegou o sexo sua essência animal.
Numa aula sobre a repressão sexual na igreja católica através da história, o palestrante convidado, um doutor em teologia, ao ser indagado sobre o celibato entre os ministros daquela igreja, não podendo, ou não querendo, dar a sua opinião pessoal apelou para o recurso anedotário: “Reforma do celibato é igual reforma agrária, enquanto não sai a gente acampa”. Naturalmente provocou risos, e não se pode dizer que a pergunta ficou sem resposta.
Há todo um cuidado em não falar honesta e sinceramente sobre sexo no âmbito da igreja, a não ser nos regulamentos de exclusão ou repressão. Poderia talvez ser devido aos preceitos evangélicos?
Mateus 12-34. Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca .
Mateus 15-11. O que contamina o homem não e o que entra na boca, mas o que sai da boca, Isso é o que contamina o homem.
Ainda na mesma linha de comentários sobre o celibato, ou não, dentro da igreja:
Dois padres de paróquia de cidades vizinhas tinham por hábito se encontrarem todas as segundas-feiras sob a sobra de uma árvore no caminho entre as duas cidades. Iam até lá cada um com sua bicicleta. Ali trocavam informações sobre a semana passada e sobre os projetos futuros. Chegavam às nove horas, ficando alí até as doze horas, todas as semanas. Um dia, um padre chegou pontualmente e ficou esperando o outro que não chegava. Sempre que pensava em voltar, pensava que o outro ainda iria chegar e esperava mais um pouco. Já quase meio-dia chegou o padre atrasado, a pé. Disse que haviam roubado a sua bicicleta.
– Na minha paróquia, disse o padre descansado, quando alguém reclama de algum roubo, eu utilizo um artifício durante o sermão: Começo a falar os mandamentos e quando chego no quinto, dou uma parada e digo “não roubarás” e olho no olho de cada cristão presente na missa. Percebo quem se incomoda e o chamo depois da missa para uma conversa. O produto do roubo é devolvido ou compensado.
-Boa ideia, vou fazer isso na missa de domingo, disse o padre roubado.
Na semana seguinte, exatamente s nove horas, os dois padres se encontram no mesmo lugar, com suas bicicletas.
-Então padre, o sermão funcionou para recuperar a bicicleta? Denunciou o ladrão?
-Não foi bem assim; respondeu o outro. Comecei o sermão, conforme seu conselho, e chegando no quinto mandamento ninguém se mexeu, ninguém reagiu. Continuei então falando os mandamentos e quando cheguei no nono mandamento, lembrei-me onde tinha deixado a bicicleta.
Falando em nono mandamento, há quem diga que o pecado não reside em “desejar a mulher do próximo”, mas em “desejar a mulher do próximo“; não é uma questão de sexualidade no âmbito espiritual, mas de propriedade material. A propósito, falando do nono mandamento para uma mulher muçulmana, no contexto da sexualidade muda, eis que Larossa comentou:
Não conheço a Bíblia, não conheço os estudos sobre sexualidade e aprendi que para a religião muçulmana, o sexo é algo para deixar os homens bem. Só os homens. Às mulheres cabe a tarefa de servir ao seu senhor, obrigatoriamente caladas. Ao se prestar os tais favores sexuais é possível ter sensações sim, que ninguém é de ferro, mas aprende-se de forma sistemática que isto não deve ser expresso. O outro pode até perceber, mas é conveniente e de bom tom que se seja discretíssima, dissimuladíssima e muda a respeito. Conheço isto de muito perto. Mas não posso dizer, por não ter referências, qual o diferencial quando isto se passa fora do casamento. Agora penso: esta mudez pode ser generalizada para a espécie humana? Há sempre este constrangimento, este tom de proibido, de indevido, de bom, mas inconfessável?
Vê-se que não é só no cristianismo que a sexualidade se faz muda.
Lembro-me ainda dos tempos de catecismo e de seminário quando semanalmente confessava todos os pecados para poder comungar. Não sabia o que era “pecar contra a castidade”, mas era um item obrigatório em todas as confissões. Paguei tantas penitências por esses pecados não realizados que devo ainda ter créditos naquela conta da contabilidade. Caberia agora gastar a poupança? Agora só dá pra rir!
Lembro-me ainda de uma história que se contava na época e que eu não entendia o significado:
Chegara um padre novo na paróquia, era franciscano da ordem dos capuchinhos, divulgou-se uma informação de que ele conseguia falar com os animais e ainda mais, entender o que eles falavam. Joãozinho se apressou em avisar o padre:
– Olha, frei, tem uma cabritinha aí, muito bonitinha, mas o senhor não pode confiar nela, é muito mentirosa! Não acredite em nada do que ela falar!
Na quinta série, naquele tempo era “admissão ao ginásio”, havia uma professora, uma freira que insistia em dizer que as irmãs cobriam o crucifixo e as imagens do quarto quando se banhavam ou trocavam de roupa. Eu não conseguia entender; se Deus e os santos tudo viam, de que servia um pano, fosse para cobrir as imagens fosse para cobrir os corpos? Será que só as crianças pensam, ou não pensam os adultos tão religiosos?
Nesta questão de entendimento das crianças quanto ao pecado do sexo, poder-se-ia escrever muito, mas acredito suficiente a seguinte anedota:
Uma menina, com cerca de sete anos, conduzia uma vaca puxando-a por uma corda. Ao passar defronte a igreja foi interpelada pelo padre:
– Olá minha filha, para onde vai com essa vaca?
– Vou levar para o touro do seu Zé cruzar com ela.
– Mas minha filha, o seu pai não poderia fazer isso?!
– Não padre, tem que ser o touro mesmo, senão ela não emprenha direito.
Já no século XIV, na Itália, encontramos publicação de histórias de sexualidade envolvendo a aristocracia e o clero, Decameron de Giovanni Boccaccio (1313-1375), que por se constituírem de novelas em prosa, eivadas de malícias e ironias não se constituem documentos históricos, são por si só documentos que mostram o jeito anedótico de dizer verdades.
Numa de suas estórias uma virgem de 14 anos chamada Alibech, querendo ser santa, sai procura de um santo homem e é indicada ao Padre Rústico, ermitão instruído e bondoso. Aceita na condição de aprendiz, figura da jovem junto ao homem santo começa despertar sensações adormecidas. Tanto que a jovem chega a perceber:
-O que é isso que eu vejo aí, que avança e se mexe com tanta violência, e que eu não tenho?
-Isto que aqui vês, querida filha, é o diabo de que te falei. Olha como ele me atormenta, como se agita. Custa-me imenso suportar o mal que ele me faz.
-Louvado seja Deus ; redarguiu ela; por eu não ter um diabo semelhante, pois que ele vos atormenta tanto!
-Mas em compensação, tens outra coisa que eu não tenho.
-E o que é? Fazei-me o favor de dizer!
-Tu tens o inferno! E penso que Deus te enviou aqui expressamente para a salvação de minha alma, pois que se o diabo continua a atormentar-me, e se quiseres permitir que eu o meta no inferno, tu me aliviarás e praticarás a obra mais meritória possível para ganhar o céu.
-Já que é assim, meu bom padre, podeis fazer tudo quanto vos agradar. Amo tanto o Senhor que nada mais peço, do que vos deixar meter o diabo no inferno.
A história continua com o obvio, a moça gostou de tanto sacrifício e quis repetir tanto tal penitência que o padre não aguentava mais tanta devoção. Eis que ela reclama:
-Se o vosso diabo se acha bastante castigado e não vos atormenta mais, o mesmo não se dá com o meu inferno. Sinto terríveis comichões, e vós me daríeis grande prazer se quisésseis suavizar essa aflição, assim como eu acalmei a do vosso diabo.
Acabou voltando para a cidade onde descobriu que todas as mulheres gostavam de tal devoção. E conclui o autor:
Este anexim chegou até nós e vós sabeis que ainda se mantém. De onde concluo, minhas belas damas, que se sois boas cristãs, como não ponho em dúvida, deveis trabalhar a fim de tornar a meter o diabo no inferno.
A dificuldade das religiões, não só as cristãs, em aceitar a sexualidade como parte da vida social e remetendo qualquer procedimento a digressões, faz da fala religiosa uma fala patética, e aí surge a possibilidade do riso subversivo.
A patética médica
Toda frustração do dia a dia, pela opressão dos mais diversos setores, provoca a agressividade; como não nos é permitido sair por aí espancando todo mundo, rimos da desgraça. Isso é saudável.
Os médicos sabem da importância do riso para o coração, para o pulmão e para o sistema imunológico. Depois de uma sessão de riso, o coração baixa sua frequência por até meia hora, promovendo uma sensação de bem estar continuado. O riso largo promove uma troca gasosa substancial só comparada a uma boa sessão de exercícios físicos. Todo sistema imunológico funciona melhor quando o indivíduo se permite rir de tudo e até de si mesmo; quem assim procede evita os males do stress, pega menos gripes e resfriados. No mundo todo ri do escorregão na casca de banana (ou similar) pois a queda, a perda do equilíbrio, é um medo universal, consequentemente um motivo universal para o riso. Rir é o melhor remédio físico e mental, faz o corpo produzir endorfina altamente relaxante para todas as tensões musculares. Talvez os médicos não queiram perder a clientela.
Por falar em cliente:
Um casal chega ao médico solicitando se o profissional poderia observar uma relação sexual ali no consultório. O médico concorda. O casal transa, paga a consulta e vai embora. Durante quatro semanas o casal volta com a mesma demanda. Sempre paga e vai embora sem querer a opinião do médico. Um dia o médico ousa declarar que não está vendo nada de mais na relação do casal e que poderia “dar alta”.
– Sabe doutor, diz o paciente, eu sou casado e ela também. Corremos o risco de sermos vistos entrando ou saindo do motel. Aqui não tem problema. Além de ser mais barato que o motel ainda conseguimos reembolso no plano de saúde.
Um famoso ginecologista do Paraná, para falar da influência da musculatura pélvica na qualidade da relação sexual recorreu a uma história, segundo ele, verídica:
Quando eu era pequeno, no interior do Paraná, havia na minha cidade uma manquinha que largou do primeiro marido e juntou com o segundo. O primeiro matou o segundo. Um fazendeiro famoso na região largou tudo para viver com a manquinha. E ela nem era bonita, e ainda era manca de uma perna, eu não entendia o porquê tantos homens se interessavam por ela. Qual seria o motivo?
Anos depois, já ginecologista clinicando em Curitiba, ao entrar uma paciente mancando de uma perna, lembrei da manquinha de minha terra. Fiz um exame completo e lembrei de medir a tensão dos músculos da vagina. Deu 100 quando a média das mulheres é 50 a 60. A partir daí passei a fazer essa medida em todas as mulheres que aparecessem com qualquer assimetria pélvica. Sempre era maior que a média das mulheres simétricas. Ah, então era por isso que a manquinha fazia tanto sucesso?
Na linguagem popular, permeada pelo anedotário, se fala da “chave-de-perna”, uma raridade que poucos homens tiveram a felicidade de encontrar. A capacidade da mulher “morder” o pênis com a musculatura vaginal. Algumas tentativas impróprias desse ato, impróprias no sentido de não ter a habilidade suficiente, acabam por apertar, não com a vagina, mas com as pernas, apetrechos mais sensíveis, normalmente dependurados, com resultados lamentavelmente óbvios.
Só recentemente e de forma tímida que alguns médicos ou psicólogos estão enveredando pelo ramo da sexualidade e falando de procedimentos para melhoria das relações. Mesmo assim, pela exigência do “caráter científico” ou ético e pela compostura editorial não deixam de ser uma linguagem patética. O caráter essencial da atuação do profissional de saúde é fazer com que cada cidadão seja o agente de sua própria saúde. Isso só se consegue pela educação. Estou para ver quem na área de saúde ou de educação vai conseguir ensinar, com seriedade, a felicidade e o prazer na atividade sexual. não falo de “workshops” avançados e elitizados, mas de atividades institucionalizadas.
Um famoso médico atuante na área de sexualidade relatou uma dificuldade de consultório quando se trabalha com casais:
Havia algum tempo que o casal procurara a clínica para medicação do marido que não estava dando conta do recado. Depois de diversas tentativas, mudanças de remédios, e nenhum resultado visível, a esposa solicitava alguma providência mais drástica. Aproveitando a ausência momentânea da esposa, o marido disse baixinho:
– Tá bom doutor, fora funciona! Mas diga para ela que não tem jeito mesmo!
Como o médico poderia dizer melhor desse problema tão comum nos relacionamentos sem o caráter jocoso da anedota? Teria que consubstanciar toda sua fala com resultados de pesquisas e notas de rodapé. E tem mais, pelo caráter patológico da atividade, o que estiver funcionando satisfatoriamente não é problema médico. E ainda mais, se não funcionar é problema psicológico, não é médico.
Tive um colega de cursinho que era hipocondríaco. Entrou em medicina. Tudo que estudava provocava sintomas ou sentia a doença. Felizmente optou pela especialização em ginecologia.
Voltando vaca fria, as explicações médicas sobre os problemas sexuais são mesmo a fala sobre problemas stricto-sensu. Mesmo os colegas com quem convivemos, pelos corredores da instituição, trocando piadas e outras pilhérias, ao falarmos de sexo sob a óptica profissional, mudam de cara, precisam vestir a máscara. Antes de estudar medicina, minha mulher me fazia carinhos, hoje ela me apalpa.
A patética pedagógica
Por mais incrível que pareça o maior dispêndio em sexualidade que se tem notícia na escola vem do trabalho de um padre (Mendel). Mas como todos sabem, é do cruzamento de ervilhas que estamos falando. Próximo a isso, quase concorrendo com tamanha importância, estão as briófitas e as gimnospermas. não faríamos justiça se esquecemos de pistilos e gineceus. Com isso, estamos entendidos, é mais do que suficiente. Poder-se-ia até deduzir que a mosca, talvez a drosófila melanográstrea que passa pelo quintal do vizinho, poderia trazer um irmãozinho novo lá pra casa, não fossem as aulas de anatomia do aparelho reprodutor animal.
Depois de uma aula sobre de onde veem as crianças, Joãozinho reclama:
– Eu nunca podia imaginar que meu pai fosse transar com uma cegonha!
Como não se ri na escola, a escola ri da seriedade. Larossa, falando do riso na escola, apresenta duas hipóteses sobre a pedagogia que não ri:
A primeira é que, na Pedagogia, moraliza-se demasiadamente. E o discurso moralizante tem um tom grave, sério, um certo tom patético. A segunda hipótese é que o campo pedagógico é um campo constituído sobre um incurável otimismo. E o riso está sempre associado a uma certa tristeza, a uma certa melancolia, a um certo desprendimento. O pedagogo moralista é um otimista, um crente em suma, E sempre custa a um crente estabelecer uma distância irônica sobre si mesmo.
O professor não vê o seu caráter patético, daí provocar a reação de desmascaramento desde através do riso camuflado ou até com a gargalhada solta. Isso em qualquer tipo de assunto curricular, imagine agora o sexo no currículo. Falando nisso, há no currículo do programa de Sexualidade Humana algo como “prática um e prática dois”; minha mulher, que é médica, já se prontificou a dar atestado de dispensa, por incapacidade física. A patética pedagógica na área da sexualidade não precisa de anedota, pois já é, por si só, uma piada. Mas o que abunda não prejudica:
Brincadeiras parte, cabe aqui uma defesa honesta das dificuldades circunstanciais do professor em abordar os temas transversais sob o título de sexualidade, pois a sociedade está dividida entre os pais que querem entregar a educação sexual dos filhos para os professores e aqueles que não querem que se fale disso na escola, e provavelmente nem se toque no assunto em casa.
A gatinha, de shortinho, chega pro pai e pede:
– Ohhh velho! Me descola um cigarro aí.
– Cigarro? Mas desde quando você fuma, minha filha?
– Desde o dia em que eu dei minha primeira trepada.
– O quê? E como foi isso?
– Sei lá, eu estava bêbada…
Conclusão
Uma questão linguística: Jacular, é uma oração rápida e fervorosa: Aí meu Deus, me perdoa! Qualquer outra coisa que você possa estar pensando, ou ser levado a pensar, pode ser também.
Ao querer fechar o trabalho dá uma sensação de querer explicar a piada. E nada mais chato do que explicar uma piada. Pode-se dissecar uma piada como se disseca um sapo, mas tanto numa como noutra situação o objeto de pesquisa morre durante o processo.
Joãozinho chegou para um professor e disse, vou contar uma piada de professor.
– Mas eu sou professor, disse o professor.
– Tudo bem, eu conto duas vezes.
Falando sério (agora, toda vez que penso nisso dá vontade de rir), afinal estamos na academia, sou obrigado a concluir atendendo a questão inicial sobre a informalidade subversiva do anedotário popular quando o assunto é sexualidade. Como a fala institucionalizada tenta “pregar” uma verdade, uma certeza, aparece o riso que destrói as certezas. Larossa conclui que: O riso permite que o espírito alce voo sobre si mesmo. E por isso, emenda, é certamente ambíguo e perigoso.
A verdade institucionalizada na religião, na medicina ou na pedagogia, permite toda sorte de ensaios e estudos acadêmicos que pontuem similitudes ou diferenças, mas não aceita o riso, a ironia. Daí exatamente propiciar, como saída dialética, a manifestação do subversivo, tal como uma válvula de escape. As pessoas sérias são alvos de riso e de piadas, pois é do sério que se ri. O anedotário procura subverter a ordem estabelecida, desmascarando a seriedade, daí a periculosidade. O anedotário é ambíguo, pois não diz que o que diz seja a verdade, nem se é verdade o que diz. Ao dizer um fato promove a realização de um outro fato, um recorte ambíguo sobre o fato.
Poderia dizer que o sexo é coisa séria, a reprodução é coisa séria. Para quem acredita em Deus, a capacidade de reprodução, por mais animal que seja, é o poder mais divino no ser humano. Mas não é desse sexo que se fala, pois esse só seria utilizado para reprodução, algumas vezes na vida, com intervalos médios de dois anos, durante a vida adulta. Também entre os humanos de mais tacanha capacidade esse evento é possível e com eficiência. Fala-se, porém, de sexualidade, da atividade sexual associada sensualidade, aos órgãos dos sentidos e mente, é mais psicológica do que física e não restrita ao órgão reprodutor em si. Cruzar, enquanto atividade animal, qualquer animal consegue. Fala-se da sexualidade como coisa humana, desenvolvida culturalmente.
A sexualidade, pelo glamour desenvolvido na literatura, como é explorada pela mídia, como sempre foi provocada pela repressão e tantas outras interferências mais, acaba provocando o medo. Fez-se fantástica, fez-se extraordinária, fez-se formidável, fez-se inatingível por simples mortais; isso mete medo. Qualquer seriedade diante sexualidade promove a máscara, perde-se a naturalidade. Qualquer modelo de comparação é excludente. Qualquer tipo de avaliação é discutível. Diante a tudo isso, só resta rir para disfarçar o medo de não ser competente, de não saber fazer, de não dar conta do recado, de não ser apreciado e outras fantasias correntes. Disso se ri em sexualidade, dos outros; isso nunca aconteceu comigo! Do medo, fez-se o riso.
Vemos que na religião só se fala de proibição e castigo; na medicina só se fala de doenças sexualmente transmissíveis e reprodução, nesta ordem mesmo; na educação se mostra muito a reprodução assexuada ou o sexo entre plantinhas. E nós outros?
Talvez pelo rigor científico do distanciamento do objeto não nos seja permitido sermos sujeitos e objetos da mesma pesquisa, daí não haver possibilidade de um estudo sério e objetivo.
Afinal, sexo sério é negócio dos produtores de sêmen, dos tratadores de animais, das fazendas de reprodução; atividade sexual só serve mesmo para reprodução animal, o resto é farra, é brincadeira, é sensualidade, é felicidade, é alegria.
– Ih… gozei. Quer dizer, acabei. Foi bom para você também?
Referências Bibliográficas
BOCCACCIO, Giovani. Decameron. São Paulo: Banco Cultural Brasileiro, sd.
LAROSSA, Jorge. Pedagogia profana – danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
POSSENTI, Sírio. Os humores da língua. Campinas: Mercado das Letras, 1998
Texto apresentado na especialização em sexualidade humana – Unicamp 2002